Brigitte Bardot morreu este domingo, contava 91 anos. O óbito foi anunciado pela fundação que tem o seu nome e ela própria criou em 1986, uma ONG francesa cuja missão, como se pode ler no site oficial, é a “proteção dos animais selvagens e domésticos”. Faleceu na sua propriedade La Madrague, em Saint-Cyr-sur-Mer, no sul de França, próximo de Toulon e a cerca de 150 km de Cannes. Bardot foi um verdadeiro ícone cultural cujas singularidades ultrapassaram as fronteiras do cinema. Quando, no começo da década de 1970, as autoridades francesas decidiram que o busto oficial de Marianne, figura simbólica da República Francesa, devia ter como modelo uma celebridade do mundo das artes, ela foi a primeira escolhida — a sua escultura foi criada por Alain Aslan e esteve patente nas câmaras municipais de toda a França entre 1970 e 1972 (Michèle Morgan foi a sucessora). .A sua condição de estrela tem um momento “fundador” na edição de 1953 do Festival de Cannes — foi o ano em que a Palma de Ouro distinguiu O Salário do Medo, de Henri-Georges Clouzot. Bardot foi uma das presenças mais faladas, não por ter apresentado um filme, antes por causa das fotografias que tirou no areal de Cannes — em bikini, importa acrescentar. Enfim, convenhamos que o bikini não foi o “motor” das conquistas femininas dessa época de muitas transformações sociais e simbólicas. Afinal, Bardot estava em Cannes para promover o filme Manina, La Fille Sans Voiles, de Willy Rozier, uma aventura a meio caminho entre o policial e o melodrama, em que, precisamente, surgia em bikini nos areais da Córsega... a ponto de o filme estar a ser lançado nos mercados de língua inglesa como The Girl in the Bikini. .É verdade que Bardot assumiria um papel decisivo na transfiguração das personagens femininas no cinema, mas a consolidação da sua “mensagem” só aconteceria em 1956, com o bem chamado E Deus Criou a Mulher, dirigido por Roger Vadim, o seu primeiro marido. Contracenando com Jean-Louis Trintignant, Bardot vivia uma história de paixões desencontradas, temperada por um erotismo que a sua personagem exibe de modo franco e provocatório. .Antes de E Deus Criou a Mulher, ainda que em papéis discretos, Bardot começara a construir uma carreira com diversas ligações a figuras emblemáticas do classicismo francês. Exemplos significativos são a evocação histórica Se Versalhes Falasse (1954), de Sacha Guitry, ou a comédia romântica As Grandes Manobras (1955), de René Clair. Voltou a ser dirigida por Vadim em Vagabundos ao Luar (1958), contracenou com Jean Gabin no policial Um Caso Perdido (1958), de Claude-Autant Lara, e protagonizou, com o português António Vilar, A Mulher e o Fantoche (1959), de Julien Duvivier, adaptação muito livre de La Femme et le Pantin, de Pierre Luoÿs — o lançamento deste último título trouxe-a a Portugal em 1960, com o segundo marido, o ator Jacques Charrier, numa jornada de grande impacto popular e mediático. . O caso Godard Tendo em conta o turbilhão criativo da Nova Vaga francesa, iniciado em meados da década de 1950 pelos críticos, futuros cineastas, reunidos na redação da revista Cahiers du Cinéma, poderá perguntar-se se Bardot foi também uma “bandeira” desse movimento. Talvez se possa dizer que a resposta é: não, mas... E Deus Criou a Mulher não é habitualmente citado como um título pré-Nova Vaga (rótulo aplicado a Fim de Semana no Ascensor, de Louis Malle, lançado dois anos mais tarde). O que não impediu que, num texto publicado nos Cahiers du Cinéma em julho de 1957 sobre a sua segunda realização, Uma Aventura em Veneza, Jean-Luc Godard o elogiasse por saber refletir “l’air du temps” — Vadim fazia mesmo “com naturalidade aquilo que há muito tempo devia ser o abc do cinema francês”. .Prolongando o alfabeto de Vadim (ou talvez não...), o certo é que Godard viria a realizar o filme que, se mais nada houvesse, bastaria para Bardot ocupar um lugar de eleição na história do cinema e da cinefilia. A saber: O Desprezo, produção de 1963 baseada no romance de Alberto Moravia. Trata-se, curiosamente, de um filme sobre os bastidores do cinema, acompanhando a rodagem de uma adaptação de A Odisseia, com a herança literária e mitológica de Homero a ser revisitada pelo realizador alemão Fritz Lang (“no seu próprio papel”, como dizia Godard). Bardot não surge ligada ao projecto, já que a sua personagem, Camille, está casada com Paul Javal (Michel Piccoli), o argumentista contratado pelo produtor americano (Jack Palance) para “retocar” o argumento. Aquilo que Godard filmava era, afinal, o fim de uma época em que a “velha vaga” dos mestres clássicos ia saindo de cena — Lang viveu até 1976, mas o seu derradeiro filme, O Diabólico Dr. Mabuse, data de 1960. A importância histórica e simbólica de O Desprezo envolve a perceção de Bardot como uma estrela ambiguamente ligada ao esplendor do passado no interior de uma conjuntura industrial que, a pouco e pouco, já não terá lugar para o seu misto de sinceridade, rebeldia e sedução. É certo que, depois de O Desprezo, Bardot ainda protagonizou, com Jeanne Moreau, um grande sucesso internacional, Viva Maria! (1965), de Louis Malle. Dir-se-ia uma tentativa de prolongar “em tom feminino” uma certa moda de aventuras mais ou menos picarescas, com resultados tão competentes como medianos. Foi o filme que deu a Bardot a sua maior projeção nos prémios de língua inglesa, valendo-lhe uma nomeação para o BAFTA de melhor atriz estrangeira (na altura, a academia britânica ainda dividia os prémios de interpretação em duas categorias). .Em 1968, Shalako surgiu como uma aposta numa grande produção euro-americana, com chancela de um estúdio de Hollywood (Columbia). A realização de Edward Dmytryk apostava num elenco realmente internacional, liderado por Sean Connery (ainda o James Bond oficial), para refazer a tradição do western num tom de algum sarcasmo, mas os resultados foram banais, tanto no plano artístico como comercial. Em 1973, Bardot voltou a trabalhar sob a direção de Vadim em Se D. Juan Fosse uma Mulher, “atualização” falhada do mito de D. Juan; no mesmo ano, ainda surgiu numa comédia irrelevante, A Vida Alegre de Colinot, de Nina Companeez... e retirou-se do mundo do cinema. .Fotogaleria. O dia em que a "Bardot-mania" inundou Lisboa (sob chuva intensa). O mundo dos animais Ironicamente, Bardot passou a ser uma “ausência” mediática. Com diversas excepções, pontuais e contundentes, que a definiram como uma empenhada militante dos direitos dos animais. Momento decisivo seria o seu protesto contra o abate de focas bebés nas regiões geladas do Canadá, em 1977, apoiando a Sea Shepherd Conservation Society, fundada nesse mesmo ano pelo activista canadiano Paul Watson. Para fazer passar a sua mensagem, em 1982, Bardot cantou Toutes les bêtes sont à aimer (à letra: “Todos os animais devem ser amados”). Não era um caso isolado na sua carreira, já que, em paralelo com os filmes, foi protagonizando algumas edições musicais, incluindo o álbum B.B. (1964) e o single Bonnie and Clyde (1968), com Serge Gainsbourg, um ano depois do impacto do filme de Arthur Penn. Também com Gainsbourg gravou Je t’aime... moi non plus, mas a versão lançada em 1968, acompanhada por escândalos vários, conta com a voz de Jane Birkin — o dueto Bardot/Gainsbourg só seria editado em 1986. .Morreu Brigitte Bardot, ícone do cinema francês