Uma crónica social entre ficção e documentário.
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'Bird'. Variações sociológicas em tom menor

'Bird' faz o retrato de uma família em acelerada desagregação — assinado pela cineasta inglesa Andrea Arnold, nele se prolonga o seu gosto por um estilo a meio caminho entre ficção e documentário.
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Assim vai um certo cinema “sociológico” do nosso tempo... Apresentado no Festival de Cannes de 2024, o filme Bird, da inglesa Andrea Arnold, é um caso sintomático de um certo tipo de dramas contemporâneos em que os índices realistas são sistematicamente transfigurados em parábolas mais ou menos universais sobre as clivagens sociais (não confundir com o Bird, de Clint Eastwood, sobre o saxofonista Charlie Parker, lançado em 1988). 

Não falta a este cinema uma evidente competência de execução, sustentada por actores talentosos e apoiada em contribuições técnicas de qualidade — destaque-se, em particular, o trabalho do diretor de fotografia irlandês Robbie Ryan. O que está em causa é o facto de filmes como Bird serem objetos de “uma nota só”, começando por apresentar uma determinada componente dramática que, depois, vai sendo repetida até à exaustão através de variações mais ou menos esquemáticas. Andrea Arnold, autora de títulos como Aquário (2009) ou American Honey (2016), procura mesmo um tipo de encenação apoiada em redundâncias dramáticas que se esforçam por gerar um romanesco exuberante e mais ou menos literário. 

Neste filme, a saga da jovem Bailey (Nykiya Adams) nasce da sua inadaptação a uma família precária, constituída pelo meio irmão Hunter (Jason Buda) e pelo pai Bug (Barry Keoghan, que vimos em Dunkirk, de Christopher Nolan, ou mais recentemente em Saltburn, de Emeral Fennell). A crise das relações familiares vai levar Bailey a procurar uma alternativa existencial na figura de “Bird” (Franz Rogowski), presença misteriosa e lírica, associada ao voo dos pássaros (obviamente sugerido pelo seu nome), a pouco e pouco promovido a uma espécie de ideal abstrato e, de algum modo, redentor. 

  A utilização de uma câmara em constante movimento desencadeia um efeito paradoxal. Assim, por um lado, reforça o gosto de Andrea Arnold por formas de ficção que preservam um certo gosto de deambulação documental — essa é, aliás, uma imagem de marca do seu universo, interessante pela ambivalência formal que procura estabelecer (por vezes até à exaustão, como acontecia em American Honey). Ao mesmo tempo, por outro lado, e de forma muito previsível, o filme esforça-se por nos apresentar um conto moral sobre as zonas mais marginais de um determinado contexto social. 

Bird é um filme da mesma família “estética” de Anora, de Sean Baker, consagrado, também em Cannes 2024, com a Palma de Ouro. O que mais conta neste tipo de cinema não são as personagens nem as situações, mas o efeito de performance formal, por fim formalista. Mesmo quando as personagens tocam as nossas emoções, sentimos que se esgotam em instrumentos de uma mise en scène que privilegia a ostentação contra a subtileza. 

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