Memórias da guerra através da animação.
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'A Mais Preciosa Mercadoria'. Desenho animado e parábola humanista

Com 'A Mais Preciosa Mercadoria', o cineasta francês Michel Hazanavicius encena o drama de uma criança judia salva do Holocausto — não com atores de carne e osso, mas através dos desenhos animados.
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Um desenho animado na seleção oficial do Festival de Cannes não seria uma novidade, mas é sempre uma excepção. Na edição de 2024, no caso da longa-metragem A Mais Preciosa Mercadoria, as suas singularidades foram tanto mais evidentes quanto o filme do francês Michel Hazanavicius não surgiu numa “sessão especial”, antes integrando a competição para a Palma de Ouro. Não obteve qualquer prémio, mas não deixou de ser um acontecimento à parte, até porque, desta vez, a animação não está ao serviço de uma fábula mais ou menos artificiosa e abstrata — esta é mesmo uma história marcada por um dramatismo em tudo e por tudo ligado às convulsões da Segunda Guerra Mundial. 

Tendo como base um conto de Jean-Claude Grumberg (editado entre nós com chancela da Dom Quixote), o filme começa por nos dar a conhecer um casal de meia idade que leva uma vida solitária no meio de uma floresta. É um cenário de singela harmonia, ainda que fustigado pelo frio e a neve — atravessado por uma linha de caminho de ferro, a sua placidez apenas é alterada pela passagem regular dos comboios. Um dia, a mulher ouve uns gemidos no meio da neve, descobrindo um bebé abandonado que passa a fazer parte da vida do casal, ainda que, no começo, com fortes reticências do marido... Um pouco mais tarde, há uma série de “flashbacks” que nos permitem perceber que o bebé pertencia a uma família judia transportada num comboio a caminho do campo de concentração de Auschwitz — o pai lançou-o para a neve, esperando poder salvá-lo... 

Tudo isto poderia ser uma narrativa encerrada numa codificação banalmente simbólica. O certo é que Hazanavicius, servido por uma equipa de desenhadores que se mantém fiel aos austeros sinais realistas que a história exige, consegue preservar a dimensão de parábola humanista como se estivesse a encenar um filme com atores de carne e osso. Aliás, mesmo sem qualquer menosprezo por algumas maravilhas que têm pontuado a animação das últimas décadas (sobretudo a partir de 1995, com Toy Story e a generalização do digital), A Mais Preciosa Mercadoria serve também para não esquecermos que os modelos da Disney ou da Pixar, sem dúvida os mais poderosos no plano da produção e do marketing, não são universais nem “obrigatórios”. 

Além do mais, convenhamos que este é um objeto francamente surpreendente na trajetória de Hazanavicius — recordemos apenas que o seu título anterior, Corta! (2022), também estreado em Cannes, era uma disparatada comédia sobre a produção de um filme de zombies... A Mais Preciosa Mercadoria obriga-nos ainda a uma nota plena de nostalgia e admiração: assumindo a voz off da narrativa, Jean-Louis Trintignant teve, aqui, o seu derradeiro trabalho para cinema. 

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