Romy Mathis, a personagem interpretada por Nicole Kidman no filme Babygirl, é uma figura de poder. Enquanto CEO de uma empresa que faz lembrar o gigantismo da Amazon, apostada na crescente digitalização dos sistemas de distribuição de encomendas, Romy domina um quotidiano profissional em que é suposto os humanos rivalizarem com as performances das máquinas. Como se se tratasse de Jeff Bezos no feminino - eis a primeira e muito saborosa ironia do filme brilhantemente escrito e realizado por Halina Reijn (nascida em Amsterdão, em 1975)..Não tem sido muito comentada esta dimensão laboral da trama de Babygirl, como se uma história com fortes componentes sexuais nos remetesse, obrigatoriamente, para um mundo abstrato em que “mulheres” e “homens” não são seres vivos, mas conceitos congelados no tempo, sem qualquer relação com a vida material. O facto de encontrarmos tal expressão (“vida material”) na escrita de Karl Marx ou Marguerite Duras talvez aconselhasse, no mínimo, alguma prudência descritiva..Romy tem uma vida tão privilegiada quanto exemplar com o marido Jacob (Antonio Banderas) e duas filhas. Em boa verdade, na sua dimensão mais íntima, as relações com o marido são para ela frustrantes, até que o seu destino se cruza com Samuel (Harris Dickinson), um estagiário da sua empresa. Dizer que se trata de amor à primeira vista seria uma falácia romântica: a atração de Romy por Samuel envolve uma ânsia explicitamente sexual em que, aparentemente, ao contrário da sua pose profissional, ela lhe cede o poder. Samuel vai ao ponto de lhe dizer que ela “gosta que lhe digam o que tem a fazer” - numa cena de perversos subentendidos, sugere-lhe mesmo, sem palavras, que ela beba um copo de leite que ele lhe enviou....Seria, no mínimo, simplista (tendencialmente moralista) lidarmos com a inteligência de Babygirl como se estivéssemos perante um panfleto ao serviço do politicamente correto, cristalizado numa parábola de “todas” as mulheres contra “todos” os homens. Há, aqui, um elemento melodramático que importa não menosprezar (sem esquecer que o melodrama é um dos géneros nobres do grande cinema clássico, europeu e americano): claro que, na procura do seu prazer, Romy é uma mulher consciente das monstruosidades que a manipulação masculina pode envolver; o certo é que Romy e Samuel são personagens “unidas” pelo mesmo desconhecimento de si próprias quando deparam com o facto de a entrega sexual poder ser um mecanismo que atrai a mais cruel insatisfação - o avô Freud bem nos avisou há mais de um século, mas quase ninguém lhe prestou a devida atenção..Querer e desejar.A par de Jessica Chastain, em Memória, ou Sydney Sweeney, em Reality (dois filmes invulgares de 2024 que talvez merecessem mais atenção do que obtiveram), Nicole Kidman consegue a proeza invulgar, extremamente complexa, de representar alguém que se confronta com as equívocas certezas que lhe estão “garantidas” pelo seu estatuto profissional ou pela sua inserção familiar e conjugal - veja-se a espantosa cena em que a filha mais velha (Esther McGregor) a confronta com a fragilidade dessas certezas..Face às maravilhas prometidas, Romy, tal como a Alice de Lewis Carroll (incluindo algumas pontuações bem humoradas), entra na toca do coelho para descobrir que as leis do desejo não estão antecipadamente escritas. Observe-se, a propósito, uma curiosa diferença: a frase do cartaz original de Babygirl, “this Christmas get exactly what you want”, foi traduzida entre nós por “este Natal vais ter aquilo que desejas”. O verbo “querer” do original (“want”) deu assim lugar ao verbo “desejar”, confundindo uma vontade de poder com as ambivalências imprevisíveis do desejo. Porque é essa a “mensagem” de Babygirl: neste mundo de ilusórias liberdades e libertações, conhecemo-nos mal - a aprendizagem de Romy é, por isso, das coisas mais belas que, ultimamente, o cinema nos ofereceu.