Horas depois de terem inaugurado o Festival de San Sebastián, a atriz Noémie Merlant e a realizadora Audrey Diwan estão prontas para dar o peito às balas. O filme chegou ao festival com a fama de ter sido recusado em festivais como Cannes e Veneza e as críticas não são propriamente meigas. Fica-se com a ideia de que um filme erótico pensado para o prazer feminino ainda pode constituir um sacrilégio ou que uma nova adaptação deste clássico erótico possa ser uma afronta à memória do sucesso (sem prestígio) do filme de 1974 de Just Jaeckin, protagonizado por Sylvia Kristel..“A reação aqui está a ser como a da crítica francesa: ou se ama ou se odeia. Claro que esse polarizar pode ser bom, mas na prática custa um pouco, embora só me custem as críticas negativas escritas por quem gosto. Sabe, admiro muito a crítica. É devido a certos críticos que fiquei a amar esta arte, e que me ajudaram a construir o meu cinema. Acho que as críticas negativas podem ser interessantes, fazem-me perceber onde poderia ter feito melhor. O que odeio é uma certa crítica que se queria meter comigo por ter vencido o Leão de Ouro, mas essa não é a crítica verdadeira”, diz a realizadora. Ela, que no anterior O Acontecimento, Leão de Ouro em Veneza, deve ter ficado habituada ao consenso..Goste-se ou não, Emmanuelle é o filme que também reforça o estrelato de Noémie Merlant, atriz generosa que, ao lado de Audrey Diwan, não disfarça o sorriso. Ela, que explora uma performance física no limite, muitas vezes sem medo do ridículo e do pior do “kinky”. Dir-se-ia que é um triunfo sereno da atriz que já era muitíssimo convincente em filmes como Retrato de Rapariga em Chamas, de Céline Sciamma, ou O Inocente, de Louis Garrel..“Ao ler o argumento pela primeira vez apaixonei-me por esta Emmanuelle - ela tem a mesma relação que eu tenho com o meu corpo. Com este filme, a primeira coisa que surgiu foi uma conexão corporal - ela é como um robô, uma mulher que tenta atingir a perfeição e as regras da sociedade, incapaz de ter prazer. Para mim, como mulher, isso era algo interessante, cheio de risco. Uma Emmanuelle cheia de tristeza e vazio. O filme é, depois, sobre essa possibilidade de exploração do prazer: a dada altura ela começa a falar e a tentar ter prazer”, conta..Em seguida, a realizadora acrescenta: “Neste filme descobrimos coisas muito divertidas sobre excitação e consentimento. Para muitas pessoas, consentimento é pedir a uma rapariga para assinar um contrato, que é a coisa menos sexy que se pode imaginar. O que descobrimos é que à medida que esta Emmanuelle se vai conectando com o seu corpo, mais fica apta a colocar as palavras ao serviço do seu desejo. Quando ela pede ao homem para lhe lamber o mamilo é um sinal da sua autoconfiança. Como cineasta, senti que essa é uma cena que faz mudar o ar na sala… Gosto disso, gosto dessa ideia de que o consentimento pode ser sexy.”.Audrey lembra ainda que o movimento #MeToo veio mudar a maneira como se prepara e se encena sexo no cinema. Mais uma vez, goste-se ou não, Emmanuelle, este Emmanuelle feminista, só poderia ter nascido após esta revolução..A realizadora Audrey Diwan..Para se preparar para o papel, Noémie confessa ter feito um trabalho de casa prévio: “Vi e revi todos os filmes de Wong kar-wai, são os meus filmes eróticos preferidos! O primeiro filme que vi na vida no cinema foi Disponível Para Amar! Tinha 10 anos, era muito jovem, mas já tinha sensações… Foram as minhas primeiras emoções: apaixonei-me, ri e chorei.”A conversa volta às já muito faladas cenas de sexo, todas elas filmada com risco, sim, mas possuidoras de uma elegância sofisticada: “Em vez de estarem coreografadas, essas cenas eram discutidas entre nós. Surgiram muito à base dos ensaios. Sabíamos sempre por onde estávamos a ir nos diversos degraus da cena, o que queríamos e o que não queríamos mostrar. Os atores foram bastante considerados, a Audrey ouvia o que nós dizíamos e, acima de tudo, respeitava-nos. No final, sentíamo-nos tão considerados que acabávamos por dar mais”, confessa a atriz, embora Audrey Diwan acrescente que Noémie acabou por rescrever algumas das suas cenas..Sobre a palavra feminismo, a realizadora deixa um recado: “Tudo o que provém dessa palavra soa mal. Temos ainda um longo trabalho pela frente! É uma loucura - desde quando feminismo se tornou num insulto!!? O que é incrível é que toda a gente sabe que a igualdade é melhor, mesmo sexualmente. Ninguém quer uma mulher a simular um orgasmo. Quando explicamos que é complicado uma mulher chegar ao orgasmo é porque é verdade.”.Um orgasmo em 2024.Tal como no filme de 1974, este Emmanuelle começa numa viagem de uma francesa ao Oriente. Se antes era uma exótica Banguecoque, agora é a Hong Kong dos nossos dias, e quase tudo ocorre no interior de um hotel de cinco estrelas - hotel esse cujos luxos (e as luxúrias) vão ser passadas a pente fino por esta nova Emmanuelle, encarregada de encontrar falhas, a bem de uma deliberação do grupo que a contrata. Uma Emmanuelle perfeccionista que na sua prisão dourada será obrigada a soltar um desejo sexual que lhe permitirá ser verdadeiramente livre..Audrey Diwan, com a ajuda de Rebecca Zlotowski, a realizadora de Grand Central, que assina também o argumento, está mais interessada em questões de poder. Poder feminino… Ao contrário do filme anterior, preocupa-se mais com a forma do que com a substância. Uma forma que não deixa de ser discurso político, numa trama que se confunde com o filme puro erótico e o thriller psicológico, numa intriga sobre a ética do trabalho em tempos de novo milénio..Diwan filma um mistério, tão íntimo, como físico. Uma mulher à procura de um orgasmo para se identificar. Os fantasmas do filme erótico feito para homens nos Anos 1970 morrem logo à nascença. O erotismo feminino ou como o determinismo feminista é elegante, rejeite-se ou não..Será um filme libertino? Esse é também o mistério que a proposta inclui..Emmanuelle é um objeto que peca por, às vezes, cair na ratoeira do politicamente correto destes tempos de cultura woke, um pouco como se estivéssemos numa comissão de coordenadores de intimidade. Higienizado, se quisermos. Mas não largamos o olhar perante a caça ao orgasmo de Noémie Merlant… .Jamie Campbell Bower “A minha versão marota representa o meu lado anticonformista”.Um dos secundários de luxo de Emmanuelle é o inglês Jamie Campbell Bower, estrela de Twilight e, agora, da série Stranger Things. Um ator ainda em fase de reinvenção depois de sair do alcoolismo. Um talento fora das normas..Há um cliché que diz que os melhores papéis não passam pela quantidade mas sim pela qualidade. Foi por isso que apostou neste pequeno papel de um excêntrico hóspede de um hotel milionário?Com toda a honestidade entrei neste filme porque amo o trabalho desta realizadora! Além de cineasta, a Audrey é uma artista. O que conta para mim nunca é o tamanho do papel, o que conta sim é com quem trabalho e se posso contribuir com alguma coisinha que seja importante. Isso deixa-me orgulhoso..Há uma aura de mistério nesse tipo que criou…É estranho porque vinha da personagem do Stranger Things e achei que ali é que trabalhava com um registo de alta intensidade. Em Stranger Things estou sempre numa base de agressão, mas aqui não, era uma outra coisa. Mais uma vez, para mim, Emmanuelle foi mesmo só a oportunidade de ser dirigido pela Audrey. Não podia estar mais relaxado… Fui um canal para as palavras fluirem. Talvez por isso, tenha chegado às filmagens no primeiro dia terrivelmente nervoso. Não estava habituado a representar de forma menos intensa. A personagem estava descrita como um ogre, um homem que quer sempre mais e mais. Num filme que é sobre liberdade ele vê-se como alguém solto mas é um produto amachucado pelo ódio e a ira..Foi visto há uns anos no NOS Alive com um visual muito rock star. Os atores célebres de cinema podem ser estrelas pop?Talvez, sempre toquei música, já tive bandas. Não gosto de dizer que sou rebelde mas a minha versão marota representa o meu lado anticonformista. Tenho é de estar sempre a tentar conter-me. O que me agrada mesmo é tentar ir até aos limites..Por outro lado, sente-se que a indústria em Hollywood tem medo dos “bad boys”…Não falo pelos outros, apenas tento seguir os meus instintos. Levou muito tempo a sentir-me bem como sou. Cresci em Londres na explosão da cena “indie” dos anos 2000, em que a ideia da relação entre o artista e o fã era desmantelada. Diverti-me tanto.