Com o título imposto de Peanuts pela United Features Syndicate, a agência que contratou Charles Schulz, estreou-se há 75 anos a tira de banda desenhada que iria tornar-se na mais popular à escala global e num ícone da cultura popular. Estreou-se em sete jornais, do The Washington Post a dois diários locais da Pensilvânia. Quase 50 anos depois, quando o autor se despediu dos leitores, ao fim de 17.897 tiras, os problemas existenciais de Charlie Brown e o universo onírico de Snoopy tinham um alcance de 2600 periódicos em dezenas de países. A efeméride não passou em claro no Museu Schulz, na Califórnia, com duas exposições comemorativas, e no plano editorial com a publicação de The Essential Peanuts. Por cá, estará à venda a partir da próxima semana O Indispensável do Snoopy.O nome Peanuts – substituto de Li’l Folks, ou seja, “miúdos” – é o único corpo estranho da tira em relação a Charles Monroe Schulz. A começar por Charlie Brown, uma criança insegura que tem como duas faces da moeda a persistência e o falhanço. Junte-se outros dados, como o pai de ambos ser barbeiro, e de terem um cão como amigo, Spike na vida real, Snoopy nas tiras. A evolução diária que os traços e as personagens sofreram foi a grande marca de Peanuts, ao conseguir que um universo composto por crianças, um cão e um pequeno pássaro abordasse a um tempo com humor e sentimento os dramas do crescimento e fosse lido por milhões de pessoas, crianças e adultos, todos os dias. . “A caracterização perspicaz que Peanuts oferecia no seu formato compacto e minimalista evoluiu nos seus primeiros anos com confiança, passando de melancolicamente excêntrica a revolucionária. Peanuts tinha alma”, descreveu o autor de BD Howard Cruse. Ou, como mais famosamente escreveu Umberto Eco – com quem Schulz disse ter mantido uma discussão teológica quando se conheceram –, num ensaio de 1985: “Nunca se poderia compreender plenamente o poder poético da obra de Schulz lendo apenas um, dois ou dez episódios: é necessário entender profundamente as personagens e as situações, pois a graça, a ternura e o riso nascem apenas da repetição infinitamente variável dos padrões e da fidelidade às inspirações fundamentais. Exigem do leitor um ato contínuo de empatia, uma participação na calorosa interioridade que permeia os acontecimentos.”. E o que disse Schulz de optar por deixar os adultos de fora das tiras? “O mais importante é que as crianças parecem aceitar as ações do Snoopy. É totalmente absurdo que este cão esteja deitado em cima de uma casota pontiaguda. O Snoopy nunca fala com as crianças (...) mas estas compreendem de alguma forma o que ele está a fazer sem de facto saberem o que ele está a pensar. E elas aceitam-no porque, creio, podemos dizer que as crianças vivem vidas diferentes. Penso que as crianças são como animais”, afirmou numa longa entrevista ao The Comics Journal. Nascido em 1922 em Minneapolis, Charles Schulz teve de imediato uma ligação às tiras cómicas quando um tio seu o alcunhou de Sparky devido à personagem Spark Plug, um cavalo de corrida da tira Barney Google. Cresceu na cidade vizinha de Saint Paul, onde o seu pai, para lá da barbearia, não dispensava a leitura de jornais, em especial as páginas de humor desenhado. O gosto foi passado ao filho e este foi começando a copiar o que lia nos jornais e o que ia colecionando nas revistas e livros. Foi também através de um jornal que chegou à sua primeira formação, enquanto frequentava o liceu (um período que classificou de “desastre total” e que tanto material lhe ofereceu para as tiras). A mãe viu um anúncio de um curso por correspondência para “aspirantes a artistas” visuais e, ainda antes de chegar aos 18 anos, já tinha conseguido publicar cartoons humorísticos. Nessa altura frequentou também um curso de cartoon na Universidade do Minnesota, antes de ser chamado para o exército. Combateu na Segunda Guerra Mundial, tendo chefiado um esquadrão de metralhadoras. Apesar de lamentar a solidão e a perda de tempo que representaram os três anos de serviço militar, mais tarde disse orgulhar-se mais da insígnia de combate de infantaria do que de todos os prémios que recebera enquanto artista visual. . De regresso da Alemanha, depois de meses a jogar golfe - o seu desporto de eleição - às custas de um subsídio de reintegração, Schulz regressou à Escola de Instrução Artística, em Minneapolis, onde se tornou instrutor, enquanto continuava a tentar a sua sorte, ao enviar cartoons ao Saturday Evening Post, tendo sido publicado em 15 ocasiões. Em paralelo, publicou os Li’l Folks semanalmente no St. Paul Pioneer Press. Um colega da escola aconselhou-o a prosseguir com os cartoons com crianças. Os Peanuts, o seu desenvolvimento, deixaram para trás o quadradinho único para os quatro da edição diária - que tanto podiam ser publicados na horizontal como na vertical ou em quadrado. O universo Peanuts entrou na cultura popular ao ponto da missão Apollo 10, em 1969, ter no módulo lunar o nome de Snoopy e o módulo de comando Charlie Brown (curiosamente, o paradeiro do módulo Snoopy é desconhecido depois de um incidente). Nesse ano, os Peanuts já tinham chegado à televisão e estreavam-se no cinema - sempre com argumento de Schulz. Além de populares, as animações iriam ainda ficar associadas à música composta pelo pianista de jazz Vince Guaraldi. Muitos anos depois, em 1996, a compositora Ellen Zwilich - a primeira mulher vencedora do Pulitzer de música - compôs o concerto para piano e orquestra de câmara Peanuts Gallery. Além disso, Schulz fez publicidade durante vários anos para empresas como a Ford ou a companhia de seguros Metropolitan, o que lhe permitiu não só criar cinco filhos, mas também de desenvolver um trabalho filantrópico. A única face visível - porque assim o quis - foi a construção e manutenção de um rinque de gelo, Snoopy Home Ice, desde 1969 em Santa Rosa, na Califórnia, para onde se mudara em 1958. Em 1997, dizia financiar o espaço em 140 mil dólares por mês. Junto do rinque, que serve de base para equipas de hóquei e patinagem artística, nasceu em 2002 o Museu Schulz..'Suor Angelica' e 'Gianni Schicchi': duas óperas de Puccini no arranque da programação lírica do São Carlos.Mathilde Vanackere: “A missão do instituto é manter a cultura francesa a pulsar no coração dos portugueses”