Eis uma boa notícia, mais do que isso, um verdadeiro acontecimento: Os Moedeiros Falsos está de volta ao mercado português (ed. Bertrand, tradução de Isabel St. Aubyn). Por vezes citado como o único romance do francês André Gide (1869-1951) - em boa verdade, tal classificação foi apadrinhada pelo próprio autor -, o certo é que pertence a uma bibliografia imensa, pontuada pelas mais variadas pulsões romanescas, não poucas vezes contaminada por elementos com res- sonâncias autobiográficas. Aliás, Os Moedeiros Falsos, justamente, desenha uma trama de relações que ecoa a homossexualidade do autor, sendo também, por vezes, encarado como um marco da literatura queer..Ainda que possamos reconhecer alguma pertinência simbólica a tais rótulos e alusões, será bom não cedermos aos valores, ou à falta deles, com que uma certa cultura mediática dos nossos dias encerra os livros (e também os filmes) num determinismo “temático” que dispensa qualquer contextualização. Importa, por isso, lembrar que estamos perante um romance à beira de completar um século: a 1.ª edição de Os Moedeiros Falsos (Les faux-monnayeurs) surgiu em 1925, com a chancela NRF, da Gallimard.."Os Moedeiros falsos"André GideBertrand Editora344 páginas.A complexidade desses tempos não pode ser diluída nos lugares-comuns do nosso presente. Para nos ficarmos pelos títulos mais emblemáticos de 1925, valerá a pena referir que no mesmo ano surgiram O Processo, de Franz Kafka, Manhattan Transfer, de John Dos Passos, Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, e O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, sem esquecer Poemas de Deus e do Diabo, de José Régio..Os traumas herdados da Grande Guerra contaminavam muitas formas de escrita com a urgência de personagens atípicas, inusitadas articulações dramáticas, enfim, novas narrativas. Tudo isso a par de curiosas rimas cinematográficas: são também de 1925 filmes como A Quimera do Ouro, de Charles Chaplin, e O Couraçado Potemkine, de Sergei M. Eisenstein..A Arte da Fuga.Talvez possamos resumir, ou melhor, sugerir a fascinante complexidade de Os Moedeiros Falsos a partir de uma pergunta clássica. A saber: como construir um romance?.A pergunta, bem entendido, aplica-se à gestação de qualquer obra romanesca minimamente consistente. Neste caso, acontece que ela é interior ao próprio romance: a personagem do tio Édouard está a tentar escrever um romance que terá como título… Os Moedeiros Falsos..Não propriamente um duplo de Gide, Édouard surge-nos como “emissário” do autor, confrontando-se (e confrontando-nos) com a decisão (ou a indecisão) de a escrita se submeter aos estímulos que recebe da realidade em que habita: “A bem dizer, será esse o tema: a luta entre os factos apresentados e a realidade ideal.” De tal modo que Édouard se atreve a evocar, porventura invocando, a inspiração de Bach: “O que gostaria de fazer, compreendam-me bem, é algo como A Arte da Fuga. E não vejo por que, tendo sido possível em música, não possa sê-lo em literatura…”.Édouard define um trio central com Bernard Profitendieu e Olivier Molinier, estudantes, ambos numa relação crítica com os padrões que, de acordo com as lógicas familiar e social, devem assumir: Bernard afasta-se mesmo da família, depois de descobrir que nasceu de uma relação adúltera da mãe, e começa a trabalhar como secretário de Édouard; Olivier, sobrinho de Édouard, vive a sua paixão pelo tio como um turbilhão de desejos desencontrados, a ponto de se envolver com o sinistro conde de Passavant, afinal o agente principal dessa simulação de valores que o título de Gide condensa..Enfim, Édouard acaba por pontuar a escrita de Gide como a consciência ambígua da moeda falsa que circula entre os humanos, tanto em sentido literal, como no plano metafórico. No seu diário, encontramos frases como esta: “Debruço-me vertiginosamente sobre as possibilidades de cada ser e choro tudo o que a capa dos costumes atrofia.”.O tempo que passa.A certa altura, o autor arrisca julgar as suas personagens. Que autor? Gide? Édouard? A simples possibilidade de formular esta dúvida reforça a dimensão ética da construção de Os Moedeiros Falsos. No limite, trata-se de saber como encaramos a verdade e a mentira: “Mentir aos outros ainda é aceitável, mas a si mesmo!”.Para lá de Bernard, Olivier e Édouard, Gide elabora um labirinto de personagens e ações que propõe um fresco da sociedade francesa da época através de um puzzle que ninguém controla. Mesmo evitando revelar mais do que seria razoável, quem poderia supor, a meio do romance, a importância que o frágil Boris vai adquirir no seu desenlace?.Não há “intriga” linear, antes uma permanente deslocação de acontecimentos e energias que faz com que as mais de duas dezenas de personagens secundárias que povoam Os Moedeiros Falsos em algum momento nos pareçam, e apareçam, como genuinamente principais. Cada ser humano, incluindo o autor ou autores do romance, surge, assim, como peça vital das alegrias breves e tragédias suspensas de todo um coletivo - por alguma razão, este é um livro frequentemente citado como inspirador de diversas convulsões narrativas das décadas seguintes, incluindo o Nouveau Roman..Entre os que, há quase 100 anos, celebraram o aparecimento de Os Moedeiros Falsos, deparamos com Thomas Mann (1875-1955), ele que em 1924 lançara A Montanha Mágica, outro monumento da literatura do século XX - ambos são citados na lista dos 100 Livros do Século XX proposta pelo jornal Le Monde em 1999; Mann recebeu o Nobel em 1929, Gide em 1947. Para lá das diferentes raízes, visões e valores que encontramos nos dois romances, Gide e Mann refletem sobre o tempo e a sua cruel transparência. “O tempo é o elemento da narração, como é o elemento da vida”, escreve Mann a certa altura - poderia ser uma epígrafe para o romance de Gide..dnot@dn.pt