Se em plena pandemia, em 2020, o disco Mínima Luz trouxe os Três Tristes Tigres aos palcos, depois de uma pausa que parecia ser um sintoma de condenação da banda ao silêncio, em 2025, o disco Arca faz mais do que isso e mostra como Ana Deus, a icónica voz da banda, assume que, “de todos os discos” que fez com os Tigres (como lhes chama), este é “aquele que mais se aproxima daquilo” que idealizou.Foi assim que o concerto dos Três Tristes Tigres na Culturgest, a 18 de dezembro, teve um peso simbólico, não por encerrar a programação daquele ano, no Auditório Emílio Rui Vilar, mas por assinalar também um momento de afirmação num percurso artístico que atravessa quase 40 anos de música portuguesa. Chegado aos escaparates este ano, Arca é um álbum que surge como ponto de confluência entre maturidade artística, inquietação ecológica e uma vontade muito clara de comunicação - talvez mais clara do que em trabalhos anteriores, assume Ana Deus ao DN, revelando que agora “as letras são muito mais evidentes”.Arca, de acordo com Ana Deus, espelha a singularidade do percurso dos Três Tristes Tigres. “Quando fazemos música temos sempre esperança”, explica a cantora, numa conversa sobre o passado e o presente, mas muito centrada no concerto. Este disco, editado este ano, é atravessado por preocupações globais - políticas e ecológicas, acima de tudo -, mas também por uma tentativa consciente de não abdicar dessa esperança que permite continuar a criar.A aprendizagem pós-BanPara chegar a 2025 com este disco novo, Ana Deus atravessou um período com os Ban, por convite de João Loureiro. No entanto, agora, ao fim de quase quatro décadas - Ana Deus começou a carreira em 1987 -, há também uma noção de limite. A cantora descreve uma “carreira razoável”, sem ambições desmedidas. A experiência, essa, permanece e pesa. Se o palco já foi sinónimo de pânico, hoje essa ansiedade parece ter sido substituída por uma relação mais serena com a exposição e com o julgamento alheio.O desafio de enfrentar o palco, relata, resolveu-se, simplesmente. “Houve uma altura em que eu achei que se continuasse a ter pânico, diria a mim mesma: vai fazer outra coisa. Pus-me a mim própria nessa posição. Pronto, ou fazes ou não fazes. Deixas de fazer. Ou resolves”, explica.Agora, admite, está “mais à vontade para fazer as coisas”, mas também há desgaste. “Há uma coisa que eu já não tenho tanto, que é a energia. E a energia também conta, mesmo que façamos, às vezes, mais disparates. Fazemos as coisas de outra forma, com mais intuição e energia. Uma coisa que eu tinha antes era muito pânico. Pânico mesmo do palco. E acho que agora já não”, descreve.Essa transformação não se explica apenas pela idade, mas por um percurso que conheceu excessos de visibilidade muito cedo. Quando Ana Deus entrou para os Ban, em 1987, encontrou um contexto que descreve como “luxuoso”: estúdios, meios técnicos, uma banda estruturada e um contrato para fazer três discos, com a EMI.E tudo isto aconteceu sem que Ana Deus estivesse preparada, admite. Talvez por isso remeta esse período não para a fase da realização, mas da aprendizagem.“Não estava preparada para nada daquilo, nem para ser tão conhecida, nem para cumprir depois a coisa minimamente bem. Acho que depois voltei atrás e recomecei tudo de novo, de uma forma mais simples, de uma forma mais modesta. A minha aprendizagem depois foi quando deixei os Ban. Acho que foi muito mais isso. Portanto, aquilo, para mim, foi uma coisa muito boa, muito grande, muito fixe. Tive muita sorte, mas não contou assim muito. Porque me desligou um bocadinho até da música. Eu gostava muito de cantar. Estou a falar muito em mim”, sublinha, afastando os Três Tristes Tigres desta equação, que só entram depois.A poesia de Regina GuimarãesO regresso a um caminho mais autoral, com os Três Tristes Tigres, acabou por ser decisivo para a sua expansão artística.É também por isso que Ana Deus rejeita a ideia de “público-alvo”, depois de questionada pelo DN sobre quem é que pretende alcançar hoje, quase 40 anos depois. Não canta para um segmento definido, nem para uma geração específica, embora reconheça que a sua música tenha marcado quem cresceu a ouvir Ban, Três Tristes Tigres ou as várias colaborações que foi somando ao longo dos anos, a cantar, entre Adriano Correia de Oliveira, Rádio Macau e outros. Hoje, diz, canta aquilo que quer cantar e espera que as pessoas a ouçam.Ao revisitar o início da sua carreira, questionada sobre que música era a que fazia então, a cantora recusa rótulos como pós-punk ou experimentalismo. Aquilo que fazia no final dos anos 80 era, diz sem hesitação, “pop, puro e simples”..E foi depois dos Ban que diz ter descoberto aquilo que queria, porque, descreve, voltou “outra vez ao princípio”. “Comecei à procura do que é que queria cantar, porque ao princípio não queria nada, só queria festa. Queria aquela vida que era fixe. Os concertos são fixes. A vida era fixe. Era uma coisa boa de fazer. Não era um emprego chato, era um emprego agradável, com os meus amigos. Mas depois comecei com a ajuda, com o grande apoio da Regina Guimarães a partir daí. Foi ela que insistiu muito para que os Tigres se formassem. Foi por insistência dela”, revela, falando na poeta, cuja escrita se tornou estrutural na identidade da banda.Arca nasce, em grande medida, dessa relação. Durante o período da pandemia, Ana Deus começou a trabalhar intensamente sobre textos e sessões de poesia ligadas à ideia de fronteira - física, emocional, política. Só mais tarde percebeu que o contexto de isolamento global e a dispersão geográfica da sua própria família, com filhos a viverem em diferentes pontos do mundo, influenciaram decisivamente essa escolha temática. Muitos dos poemas do disco são de Regina Guimarães, alguns escritos a pedido, outros recuperados de sessões anteriores. A música surge depois, como forma de intensificar a carga emocional desses textos, sobretudo através da instrumentação de Alexandre Soares, até porque é essa música que os textos “merecem”, porque tem “mais intensidade e emoção”. “É isso que ele dá, aquela vibração, aquela carga anímica que ele dá às coisas. E depois continuei a pedir”, explica.Para além disto, houve todo um “contexto mundial” a influenciar esta música, a “entrar casa dentro. A questão das desigualdades sociais, a questão da demagogia política. Mas tudo muito global. Está pouco assente no país”, clarifica.Um dos exemplos mais emblemáticos é o tema Água, inspirado numa notícia sobre migrações de peixes para águas mais frias devido ao aquecimento global. O poema estabelece um paralelismo entre esses movimentos e as migrações humanas, cruzando realidade, mito e imaginação. A própria Regina Guimarães já não se recordava de ter escrito o texto quando o ouviu musicado, o que ilustra bem a forma quase orgânica como este material se transformou em canção. A presença da ecologia, embora não-dominante, atravessa o disco como uma das urgências incontornáveis do nosso tempo.Apesar do peso dos temas, Ana Deus recusa a classificação de Arca como música de intervenção. Prefere falar de “digestão” do mundo, de uma reflexão global sobre desigualdades, demagogia política e fragilidades humanas. Há, contudo, uma constante ética que atravessa toda a discografia dos Três Tristes Tigres: a solidariedade com os mais fracos. Desde Partes Sensíveis, marcado por uma sensibilidade feminista, até este novo álbum, essa preocupação mantém-se, ainda que assumindo formas diferentes.Musicalmente, Arca distingue-se também pela clareza. Ao contrário de discos anteriores, mais preocupados com a desconstrução da forma e com jogos linguísticos - como aconteceu em Comum, onde, na música Máquina das Origens, as palavras eram cortadas, invertidas ou fragmentadas - este é um trabalho feito para ser compreendido. As letras são mais diretas, a mensagem mais evidente. Ana Deus reconhece que, se o contexto fosse menos pesado, talvez regressasse a uma abordagem diferente. Mas o tempo presente impõe outra responsabilidade.No concerto da Culturgest, o alinhamento refletiu essa continuidade entre passado e presente. Houve espaço para revisitar temas antigos, lado a lado com as canções novas, mostrando que, apesar das mudanças formais e temáticas, existe um fio condutor claro no percurso da banda. Não se trata de nostalgia, mas de reconhecimento de um trabalho construído com rigor, persistência e uma rara fidelidade a princípios próprios.Questionada sobre o futuro, Ana Deus evita projeções. Não sabe o que virá a seguir, nem se haverá outro disco, mas quer que haja. O desejo, esse, é simples e utópico: que muitas das preocupações que alimentam Arca deixem de existir. Ana Deus chega a brincar, afirmando: “Sentir que está tudo tão bem que nem nos apetece fazer canções.” Enquanto isso não acontece, a música continua a ser um espaço de reflexão, de partilha e, sobretudo, de resistência sensível..Kara-Lis Coverdale e o desafio da música imprevisível e introspetiva