A aventura de Ida na "vida real".
A aventura de Ida na "vida real".

‘Amor Sem Wi-Fi' ou a conquista da realidade não virtual

Chega-nos da Noruega uma minissérie inventiva sobre o que separa, ou não, as relações online das relações na vida real. Retrato do século XXI, Amor Sem Wi-Fi estreia hoje nos canais TVCine.
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Foi Steven Spielberg quem declarou, no meio da conversa gerada pelo seu Ready Player One: Jogador 1, que “no futuro, a realidade virtual será a super droga”. Estas palavras, impressas no jornal Los Angeles Times, numa entrevista de 2018, eram acompanhadas de uma óbvia preocupação contemporânea: “Onde queremos passar a maior parte do nosso tempo? Desejamos partilhá-lo com pessoas reais no mundo real – algo que muitas vezes é difícil –, ou no mundo virtual, onde podemos ser a pessoa que sempre quisemos ser, com uma identidade que se converte no nosso ‘eu’?”, perguntava ainda o realizador americano. Os anos passaram e a questão continua a ser relevante numa era progressivamente mais digital, que, por sua vez, implica também um pensamento mais complexo em torno dos limites da Inteligência Artificial.

O que tem Spielberg a ver com Amor Sem Wi-Fi? Digamos que a minissérie norueguesa em estreia hoje no canal TVCine Edition (22h10) e TVCine+, remete para a mesma problemática levantada, na altura, por Ready Player One. A saber: a vida online está a tomar conta do dia-a-dia de muitos jovens e adultos, sendo, neste caso específico, a realidade virtual (em vez das redes sociais mais comuns) que reflete um modelo de existência caracterizado pelo isolamento físico.

Com o título original Dates in Real Life, a comédia dramática, ou romântica, escrita e realizada por Jakob Rørvik (Prémio de Melhor Série no festival Series Mania, em Lille) não se apresenta, no entanto, como uma reflexão sisuda ou simplista sobre os “malefícios da internet”. Tira antes partido da grelha própria das romcoms para explorar a aparência das relações modernas, e assim alcançar a forma de um conto de crescimento, que põe o conflito entre “real” e “virtual” no centro da aventura humana da protagonista.

Os avatares.
Os avatares.

O corpo na era digital

Temos então uma jovem norueguesa, Ida (Gina Bernhoft Gørvell), que namora à distância com Marvin, um rapaz americano, sem que ambos alguma vez tenham estado fisicamente juntos... Como é que se concretiza a relação? Eles encontram-se através dos seus avatares num jogo online, levando uma rotina no espaço virtual que simula a presença e o toque, como se vivessem, de facto, dentro da casa que construíram digitalmente à beira-mar. Um dia, Marvin conta-lhe que conheceu alguém “IRL” (“na vida real”), que está aberto a essa descoberta, e Ida, a ferver de raiva, imbuída num sentimento de traição, inicia a sua própria busca por contactos físicos fora da bolha existencial que é o sótão de casa onde passa os dias em frente ao computador.

Sempre ligada ao seu fiel grupo de amigos virtuais (mais uma vez, relações estabelecidas por avatar), que a aconselham e amparam na jornada de autodescoberta, a introvertida heroína vai somando encontros e experiências sui generis que permitem equilibrar a sua noção de realidade. Aliás, um dos aspetos surpreendentes de Amor Sem Wi-Fi é o modo como estilhaça os preconceitos à volta dos jovens “nerds”, cimentando, ao longo de sete episódios, uma empatia doce, cada vez mais próxima da nota de maturidade (como se pretende, em função das dores de percurso da personagem).

Trata-se de um caminho de aprendizagem que leva à reconexão com o corpo: num dos episódios há inclusive uma performance de nudez que funciona como terapia de consciência física na era digital. A Ida que no princípio se sentia um patinho feio, acaba por transformar-se em cisne, sem perder as referências da sua verdadeira identidade... que é indissociável do seu “eu” online.

Ou seja, Amor Sem Wi-Fi não tem uma agenda escondida, nem nada que se pareça, em relação ao fenómeno da vida online. E isso é refrescante num tempo em que a ficção tende a ser concebida como uma espécie de manual de instruções para navegar a realidade. Por outras palavras: a graça e lucidez da série de Jakob Rørvik passa por um curioso entrosamento real/virtual, que não coloca um acima do outro em termos de superioridade filosófica. Ida, que gosta de se imaginar uma princesa guerreira a passear a espada ensanguentada nas ruas de Oslo e no autocarro, não é menos pessoa quando assume o seu avatar; da mesma maneira que o amor baseado no contacto físico não é necessariamente mais autêntico do que aquele que nasceu de um simulacro. Enfim, as nuances da intimidade, e do autoconhecimento, não cabem nos discursos maniqueístas do mundo moderno.

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