Helen Mirren na premiere de MobLand, ou o esplendor dos 79.
Helen Mirren na premiere de MobLand, ou o esplendor dos 79.

80 anos de Helen Mirren: a arte de bem envelhecer

Parece mentira, mas Helen Mirren chega à marca dos 80 este sábado. Com mais de meio século de carreira, e bastante ativa no pequeno e grande ecrã, a intérprete de A Rainha continua extraordinária.
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Um espírito independente, desinibido e forte. Uma atriz de mão-cheia, que não perde dois segundos a preocupar-se com o que as pessoas pensam sobre ela. E, entre outras coisas, no debate público à volta de James Bond, uma defensora de que é preciso apostar em boas narrativas para novas Mata Hari, em vez de se tentar mudar o sexismo ancestral de 007... A dona e senhora de tal postura perante a vida nasceu em Londres a 26 de julho de 1945 – faz 80 anos este sábado –, filha de pai russo e mãe inglesa, com um nome que nada tinha de sonoridade britânica: Ilyena Lydia Vasilievna Mironov. Libertou-a do peso dessa linhagem o próprio progenitor, descendente de um aristocrata, que decidiu arredondar as palavras para “Helen Mirren”. A partir daí foi sempre a subir.

Nomeada Dama do Império Britânico em 2003 e casada com o realizador Taylor Hackford há 28 anos, Helen Mirren não tem filhos, nem medo de se dizer desprovida de instinto maternal, esse papão da sociedade politicamente correta. Aquilo de que se sentiu provida, sim, desde tenra idade, foi do jeito para a representação. O resto é história.

Resumindo: ainda pequena participou em peças de teatro na escola, aos 18 anos passou, com sucesso, numa audição no National Youth Theatre (aos 20 já se encontrava no palco do Old Vic a fazer de Cleópatra), e juntou-se à Royal Shakespeare Company na década de 1960, onde se manteve até aos anos 70, com abordagens sensuais das personagens do Bardo. Entre as “polémicas” geradas por esse modo corporal de agarrar o texto, houve uma manchete do jornal The Guardian que lhe chamou, na altura, “The Sex Queen of Stratford – mais um degrau que Mirren subiu, desprezando a condescendência de quem perdia tempo com os seus atributos físicos, sem reparar no essencial.

Na atitude, nada mudou: continuam a perguntar-lhe sobre a questão da imagem que transporta da juventude, e também como lida com a idade, mas ela despacha essa informação cor-de-rosa com respostas muito diretas sobre a importância de se aceitar as marcas da força gravítica. Razão pela qual não permite que lhe retoquem fotografias, da mesma maneira que evita a palavra beautiful. Um cliché, na sua opinião.

Volúpia e recato

Foi, portanto, o teatro que lhe facilitou a transição para o cinema, começando por aparecer no grande ecrã, em 1968, numa adaptação de Sonho de Uma Noite de Verão com assinatura de Peter Hall (fundador da Royal Shakespeare Company), apesar de ser só no ano seguinte, pela mão de Michael Powell, que se lança definitivamente nestas lides enquanto jovem musa do “pintor” James Mason em Age of Consent, um dos derradeiros filmes do mestre inglês. Aí, com muita pele bronzeada à vista e o azul do mar a enaltecer-lhe o cabelo loiro, Mirren parecia vir ao mundo, qual pintura na tela virgem, como uma das mulheres mais destemidas da escola dramática britânica.

Nessa fase inicial, ainda colaborou com um dos cineastas emblemáticos da Nova Vaga Inglesa, Lindsay Anderson (o filme: O Lucky Man!), e, em nome da dita independência, estabeleceu uma regularidade tão segura entre as produções de teatro, cinema e televisão (a série da sua época dourada: Prime Suspect), que será hoje um dos casos raros de plenitude profissional ao longo do tempo. Uma atriz que tanto encarna Golda Meir no cinema como a seguir faz um western de Taylor Sheridan na televisão, no meio disto, sem pôr de parte os palcos, inclusive da Broadway.

'Age of Consent' (1969), a entrada no cinema pela mão de Michael Powell.
'Age of Consent' (1969), a entrada no cinema pela mão de Michael Powell.

O final dos anos 80 ficou marcado pelo extenso título de Peter Greenaway – O Cozinheiro, o Ladrão, a Sua Mulher e o Amante Dela – onde Mirren interpreta a voluptuosa mulher do ladrão, que se move entre gastronomia mórbida e cenários rouge, sendo logo a seguir, em 1990, que colabora com Paul Schrader no muito esquecido Estranha Sedução (argumento de Harold Pinter, a partir do livro homónimo de Ian McEwan), ela a representar um mistério erótico em Veneza, que desestabiliza a viagem romântica de um casal... Porque é que nessa época, para variar, a apelidaram de “sex symbol dos homens inteligentes”? Está explicado.

Seja como for, Helen Mirren nunca se ficou por um registo único. Bem pelo contrário. Veja-se: de femme fatale à rainha Isabel II foi um saltinho. Essa inesquecível interpretação em A Rainha (2006), de Stephen Frears, que lhe valeu o Óscar (e um BAFTA e um Globo de Ouro), permanece como um dos mais ilustres exemplos da sua capacidade transformativa, sem que no processo se tenha perdido uma certa expressão de firmeza no olhar. Houve quem dissesse que ela assumira, de facto, a forma humana de Lilibet, mas isso nada tem que ver com a simplicidade metódica de uma imitação: Mirren esculpiu os gestos de Isabel II na avalanche de um momento histórico que ainda palpita na memória coletiva (a morte trágica da princesa Diana).

'A Rainha' (2006), filme da consagração.
'A Rainha' (2006), filme da consagração.

E não foi a primeira nem a última vez que esta grande dama britânica envergou a realeza no ecrã. Da imperatriz-consorte Caesonia em Calígula (1979) à rainha Carlota em A Loucura do Rei George (1994), passando por Isabel I na minissérie Elizabeth I (2005), e a imperatriz da Rússia noutra série, Catherine the Great (2019), o repertório tem margem para crescer. Ou não estivéssemos a falar de uma atriz que gosta de arriscar na escolha de papéis, impelida pela incerteza e o desafio, independentemente da idade.

Quem disse que uma sexagenária não podia pegar, com estilo, numa metralhadora? A comédia de ação Red: Perigosos (2010) não deixou dúvidas. E o que dizer da nova série da SkyShowtime, MobLand, onde, ao lado de Pierce Brosnan, Mirren continua a passear a magia madura dos seus lábios vermelhos em atmosfera mafiosa? Ela nunca cessou de estar pronta para as zonas de perigo da ficção, embora também aprecie o recato de personagens com um ângulo menos “sedutor”, como a insuperável esposa Alma Reville em Hitchcock (2012), Maria Altmann em Mulher de Ouro (2015) – a refugiada judia que lutou em tribunal para recuperar as pinturas de Gustav Klimt roubadas à sua família durante o período nazi –, ou uma simples mulher a dias, modesta e confiável, na comédia O Duque (2020), última obra do falecido Roger Michell.

Na série 'MobLand', sem abdicar do estilo.
Na série 'MobLand', sem abdicar do estilo.

Na calha está uma série Netflix que adapta o êxito literário de Richard Osman O Clube do Crime das Quintas-feiras, onde a veremos de regresso ao modo detetivesco (estreia no final de agosto), e, em pós-produção, um filme de Anton Corbijn, Switzerland, que junta à sua lista de personagens outra oportunidade de luxo: Patricia Highsmith, a escritora ela própria. Em suma, ninguém pára Helen Mirren.

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