A cobertura televisiva da tragédia de Gaza gera um efeito de choque cuja medida temporal não pertence ao mundo do cinema. Importa, por isso, não confundir um filme sobre a Palestina com uma variação sobre as imagens que acabámos de ver nos telejornais. A estreia de A Uma Terra Desconhecida, de Mahdi Fleifel, ajuda-nos a reconhecer a complexidade labiríntica (política, geopolítica, etc.) do que está em jogo — complexidade que, obviamente, transcende este texto.Estamos perante uma coprodução envolvendo Reino Unido, Palestina, França, Grécia, Países Baixos, Alemanha, Qatar e Arábia Saudita. A rodagem decorreu na Grécia, tendo-se iniciado um mês depois do ataque do Hamas, no dia 7 de outubro de 2023, a comunidades e bases militares de Israel. A pós-produção foi muito rápida e o filme teve estreia mundial em maio de 2024, na Quinzena dos Cineastas, em Cannes. Agora, o lançamento em Portugal acontece com chancela da distribuidora The Stone and the Plot, que irá doar 20% das respetivas receitas à Seeds of Hope, organização humanitária especialmente focada no auxílio às crianças de Gaza.Na trajetória de Mahdi Fleifel, A Uma Terra Desconhecida liga-se a A World Not Ours, documentário de 2013 sobre o campo de refugiados palestinianos de Ain al-Hilweh, na região sul do Líbano. Desde a sua infância, o pai (a partir de certa altura, com a colaboração do próprio Mahdi) foi registando o dia a dia do campo, numa visão paradoxal em que a crueza realista surge pontuada por um desconcertante humor.A Uma Terra Desconhecida centra-se nas personagens de Chatila e Reda (Mahmood Bakri e Aram Sabbah, respetivamente), refugiados palestinianos que, emAtenas, tentam arranjar dinheiro para obter passaportes falsos que lhes permitam partir para a Alemanha — o encontro com uma criança, também refugiada, irá baralhar os seus planos, tanto mais que Reda não consegue libertar-se da sua toxicodependência...Ao filme falta a acutilância narrativa e a agilidade de montagem de A World Not Ours, embora reflicta as componentes essenciais da mensagem de Mahdi Fleifel. Do dossier de imprensa do filme, vale a pena citar estas suas palavras (de uma entrevista ao crítico francês Serge Kaganski), definindo uma visão do mundo inevitavelmente marcada pelos traumas do exílio: “Como filho de refugiados palestinianos que cresceu na Dinamarca, esta tem sido a minha história. A Palestina é um mosaico de muitas histórias e muitas situações, essencialmente somos um povo no exílio. A minha experiência foi focar-me no que está perto de mim, e o que está perto de mim é o exílio. Sou grato por não ter vivido sob a ocupação israelita e por nunca ter sido humilhado diariamente nos postos de controlo israelitas; não tenho essa experiência. Mas sei o que significa viver no exílio, ser apátrida, não pertencer a lugar nenhum.”Memórias de HollywoodCuriosamente, ao evocar memórias juvenis, o realizador reconhece no seu estilo a influência do cinema de Hollywood das décadas de 1960/70, a ponto de admitir que o desenlace do filme ecoa, “inconscientemente”, a cena final de O Cowboy da Meia-Noite (1969), de John Schlesinger. Uma coisa é certa: a sugestiva utilização da película de 16 mm, com o seu grão muito próprio, não é estranha a tal herança.Sem que tal minimize o valor temático desta estreia, tenho dúvidas sobre a justeza do título A Uma Terra Desconhecida. Sendo o título inglês To a Land Unknown (e não To a Unknown Land), não creio que se trate de celebrar uma “terra desconhecida” — bem pelo contrário, a Palestina surge como terra distante, mas bem conhecida. Creio que o título remete para a terra desconhecida a que os protagonistas esperam chegar (Alemanha). Foi esse, aliás, o entendimento da distribuição brasileira que lançou o filme como Em Rumo a uma Terra Desconhecida, sublinhando que o destino de Chatila e Reda será apenas mais um lugar de exílio..'O Segundo Acto'. Onde é que está o surrealismo?.'Aqui e Acolá'. As cores do humor a preto e branco