Encenador do teatro-ópera que encerra as comemorações dos 50 anos do Teatro O Bando e celebra a escritora Agustina Bessa-Luís
Encenador do teatro-ópera que encerra as comemorações dos 50 anos do Teatro O Bando e celebra a escritora Agustina Bessa-Luís Reinaldo Rodrigues

‘Agustinópolis': mundo de Agustina em 96 figuras. Não há quem se salve

Constrói-se uma cidade e “o que parecia uma boa coisa transforma-se numa coisa má, porque as personagens da Agustina são todas terríveis umas para as outras, são hipócritas, tensas”, diz o encenador João Brites sobre a peça em que se fala e canta excertos de livros da escritora.
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Agustina Bessa-Luís nasceu no dia 15 de outubro e o Teatro O Bando foi fundado nesse mesmo dia, em 1974. Uma coincidência que ganhou outra relevância quando Mónica Baldaque, filha da escritora, convidou, por recomendação de Nuno Júdice, o cofundador da companhia de teatro, João Brites, a criar um espetáculo que juntasse “num grande palco todas as personagens de Agustina, movimentando-se como num circo”.

“Eu fiquei logo entusiasmado com a questão da multiplicidade de personagens. Porque ela constrói personagens incríveis. Não são nada lineares, são complexas, são contraditórias, sem perderem a sua coerência. São representações da humanidade”, diz o encenador, responsável também pela cenografia e a “dramatografia” (termo cunhado pelo próprio) do teatro-ópera Agustinópolis, que estreia esta sexta-feira no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém e estará em cena até domingo, dia 19.

Neste espetáculo, inspirado na peça A hora em que não sabíamos nada uns dos outros do dramaturgo Peter Handke, entram 96 personagens, não por acaso, mas porque foi com essa idade que Agustina Bessa-Luís morreu, no dia 3 de junho de 2019.

João Brites num ensaio de 'Agustinópolis', no Grande Auditório do CCB.
João Brites num ensaio de 'Agustinópolis', no Grande Auditório do CCB. Reinaldo Rodrigues

João Brites, o homem por trás do espetáculo de teatro de rua Peregrinação, que diariamente percorreu o recinto da EXPO98, de que muitos portugueses se lembrarão, explica que essa peça de Peter Handke “só tem didascálias, não tem diálogos, aqui entra uma personagem, ali outra, a história é a história destas personagens. É como se estivéssemos com fragmentos de vidas, e essas histórias acabam por ter uma narrativa”.

É isso que se passa em Agustinópolis. Mas antes da dramaturgia, veio a narrativa visual. “Eu como venho das artes plásticas, visuais, sem uma construção visionária não consigo construir um espetáculo. Isto são ideias, mas as ideias têm que se materializar”, diz João Brites, que imaginou uma cidade que se ia edificando. “Constrói-se uma cidade e nessa cidade as pessoas vão ficando mais próximas umas das outras e aquilo que parecia uma boa coisa transforma-se numa coisa má, porque as personagens da Agustina são todas terríveis umas para as outras, são hipócritas, são tensas, não há ninguém que se salve. E isso faz com que na narrativa acabe por haver conflitos, tensões, confrontos, guerra, cataclismo e essa cidade acabe por se desmoronar. Aí surge a música como hipótese de salvação. E pronto, alguma coisa sobrevive.”

'Agustinópolis', no CCB.
'Agustinópolis', no CCB.D.R.

Foi sobre essa narrativa visual que trabalhou Miguel Jesus, o dramaturgo e assistente de encenação, e também o compositor Jorge Salgueiro, da Associação Setúbal Voz, cocriadora deste espetáculo e da qual faz parte a Companhia de Ópera de Setúbal.

A dramaturgia partiu do trabalho de Maria João Reynaud e João Luiz, que identificaram e selecionaram material literário de 96 personagens. Todas as falas, incluindo as cantadas, são excertos de livros de Agustina Bessa-Luís.

“Quando peguei no material da investigação que eles fizeram, tinha não só as descrições destes 96 personagens, como também um apanhado de textos sobre algumas temáticas que traçámos como sendo importante refletir”, diz Miguel Jesus.

E qual foi o crivo? “Estamos focados sobretudo nesta ideia da maldade, chamamos-lhe até o elogio da maldade, mas não a maldade muito grandiosa, não, mesmo a maldade pequenina. O nosso lado mais escarninho, mais mordaz, mais hipercrítico, com menos compaixão, de uns sobre os outros, que vai cultivando uma espécie de ódio conivente e transbordante”.

'Agustinópolis', no CCB.
'Agustinópolis', no CCB.D.R.

Algumas personagens entram em cena uma única vez e cerca de 30 têm uma presença mais marcada, como Fanny ou Sibila. Seja como for, para Miguel Jesus, esta dramaturgia foi como montar um gigantesco puzzle, ainda para mais sendo “as frases de Agustina muito extensas, com um raciocínio que se enlaça com outro raciocínio”. Houve muito corte e cola. “Muito corte e muito cola. Eu tive de pedir ao meu filho para me emprestar bonecos de Lego, porque eu já não me entendia. Além de serem 96 personagens, algumas entram quatro, cinco vezes. Temos um espetáculo com cerca de 300 transições. E em teatro as transições são normalmente um inferno”, diz Miguel Jesus.

Para João Brites, “a narrativa é percetível para o público. O Miguel fez um trabalho muito interessante em termos da dramaturgia do verbo, a narrativa verbal. Tem lógica, não é meramente uma colagem, as pessoas que conseguem associar a narrativa visual à narrativa verbal acabam por conseguir construir uma história como se estivessem a assistir a uma série de episódios que têm uma linha comum”, sublinha.

Na parte musical, o compositor Jorge Salgueiro descreve : “Estamos numa sociedade em que a tecnologia se vai impondo. E isso na música é exposto através da relação entre o piano e a eletrónica, na qual o piano vai perdendo espaço musical, e a eletrónica vai tomando conta da partitura”. Até ao ponto “em que a eletrónica toma conta dos acontecimentos, e há uma explosão, há um chegar ao fim de um mundo. Nesse momento, dá-se o silêncio e o piano surge novamente como símbolo dessa humanidade recuperada.”

Compositor Jorge Salgueiro, sda Associação, Associação Setúbal Voz, cocriadora de 'Agustinópolis'.
Compositor Jorge Salgueiro, sda Associação, Associação Setúbal Voz, cocriadora de 'Agustinópolis'.Reinaldo Rodrigues

A história acaba mal? Diz Miguel Jesus que “acaba num ponto de interrogação. Se não estamos nem bem nem mal, melhores não estamos, para onde é que estamos a ir? Parece-me que agora, sobretudo neste momento que estamos a viver, é bom interrogarmo-nos.

Meio século de Teatro O Bando

Depois do CCB, Agustinópolis segue para o Fórum Luísa Todi, em Setúbal, entre 24 e 26 outubro, para o Teatro Nacional São João, de 30 de outubro a 2 novembro, e Centro Cultural Vila Flor, dia 22 de novembro.

Com este espetáculo, o Teatro O Bando encerra a comemorações do seu cinquentenário. E que balanço faz João Brites deste longo percurso?  "Quero partilhar com as pessoas esta ideia que às vezes o que parece impossível não é. Porque eu não imaginava que um grupo destes, que começou para a infância, um grupo coletivo, que se gere por uma cooperativa, conseguisse sobreviver 50 anos. Isto é um exemplo que aquilo que parece impossível acaba por ser possível".

Desafiado a escolher um dos acontecimentos marcantes da vida da companhia, João Brites lembra Bichos, peça que estreou originalmente em Lisboa, em 1990. "Quando nós repusemos Bichos em Coimbra, na inauguração do Centro Cultural e de Congressos S. Francisco, cidade onde nós já tínhamos feito o espetáculo com o Miguel Torga a assistir [no dia 23 de novembro de 1990, no âmbito da Bienal Universitária de Coimbra, ainda o escritor era vivo]".

A peça, com base nos contos de Miguel Torga, voltaria a ser representada em Coimbra, em 2016. "Às vezes sentimo-nos sozinhos, mas soubemos que houve 20 mil pessoas que tentaram ver o espetáculo. Tivemos que fazer um espetáculo suplementar, mas nada disso chegou para as pessoas que se tinham inscrito. Às vezes parece que as coisas já passaram, já ninguém nos liga nenhuma, mas sabemos que há uma ideia, um projeto, uma filosofia de vida que permanece e que é transmissível".

'Bichos', 1990.
'Bichos', 1990.D.R.

João Brites também "pensa" o teatro, assim se explica o lançamento no passado dia 15 de outubro do livro Atriz e Ator. Artistas Vol. III – Presença e Mobilidade Imperceptível, editado pelo TNDM II/Bicho-do-Mato.

"Neste momento, e contra mim falo, porque eu venho das artes visuais, a cenografia é um reduto ao qual eu não consigo escapar, mas reconheço que sem atores não há teatro. É no trabalho com os atores que eu me tenho dedicado mais ultimamente, e gosto de trabalhar mais aprofundadamente com os atores, não só naquilo que tem de ser eficaz para o espetáculo no final, mas compreendermos melhor os mecanismos, os processos, de forma a conseguirmos conversar melhor sobre o trabalho do ator."

João Brites
João BritesReinaldo Rodrigues

Por exemplo, desenvolve o encenador, "nós sabemos o que é o surrealismo, impressionismo, expressionismo ou naturalismo na pintura, na música, na escrita, mas no teatro, se eu não pensar no texto e não pensar na cenografia, parece que o trabalho do ator se resume a ser eficaz ou não, mas não. O ator sozinho, vestido de preto, sem adereços, sem cenário, pode fazer uma representação simbolista ou expressionista, e isso interessa-me muito, porque não é para etiquetar as coisas, mas é para termos maior capacidade de ter respostas imprevisíveis".

A expectativa de João Brites é que Agustinópolis "crie uma vez mais uma resposta de algo que nunca foi visto. Eu acredito no novo, não sou pós-modernista, acredito que nós repetimos muitas coisas, há coisas que são parecidas, mas esta necessidade de construir melhor, de novo, a arte e também a democracia, é algo que me tem apaixonado. E quando eu, na minha vida, com esta idade, começar a dizer 'já estás a repetir', tenho que desistir mesmo".

Ainda no âmbito das celebrações dos 50 anos, será possível ver no CCB até domingo liberaLinda, que inclui a exibição do documentário oKupação, realizado por Rui Simões a partir da ocupação teatral da redação da TSF pel'O Bando no dia 24 de abril de 2014, e a exposição traVessia, que mostra 24 figurinos suspensos ao ar livre, que marcaram o percurso da companhia.

Exposição de figurinos figurinos que marcaram o percurso do Teatro O Bando.
Exposição de figurinos figurinos que marcaram o percurso do Teatro O Bando.Reinaldo Rodrigues

E amanhã, sábado, dia 18, realiza-se uma conferência sobre a obra de Agustina, no foyer do Grande Auditório do CCB, com a presença de Maria João Reynaud, Mónica Baldaque, João Brites e Miguel Jesus. Investigadora, filha de Agustina, encenador e dramaturgo falarão do processo de criação de Agustinópolis, uma ideia lançada por Mónica Baldaque, no âmbito ainda do centenário do nascimento de Agustina Bessa-Luís.


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