É um livro de viagens, mas pode ler-se também como uma assunção da fragilidade pessoal e coletiva. O que a Chama Iluminou, o novo livro do escritor Afonso Cruz (edição Companhia das Letras) é, antes de mais, o relato de uma viagem, feita em 2019, em que, por duas ocasiões, o autor correu risco de vida: A primeira na capital, Santiago do Chile, onde, na sequência de distúrbios de rua, se viu encurralado por dois blindados de carabineros. Valeu-lhe, e ao seu companheiro no momento, que havia câmaras de vigilância no local e os carabineros recearam a potencial mediatização de uma ação mais violenta. A segunda, um mês depois, em Punta Arenas, num acidente de viação que o atiraria para uma longa hospitalização..Afonso Cruz não enjeita um certo gosto pelo risco: “Hoje viajo muito no âmbito da minha vida de escritor, mas é verdade que, quando viajava por ócio, desafiava alguns limites.” O que aconteceu no Chile foi, no entanto, um pouco inesperado, como nos diz: “Já tinha estado em alguns países que estavam em guerra ou que sofriam enormes convulsões sociais, mas no Chile o risco atingiu um extremo. Quando parti, achava que eram exageradas as notícias que se ouviam sobre a confusão existente no país. Na verdade, por muito más que sejam as coisas, sabemos que a vida quotidiana das pessoas continua sempre, longe do foco das notícias.”.Mas uma vez em Santiago do Chile, Afonso pôde constatar que não havia qualquer exagero em tais avisos: “Deparei-me com uma realidade muito tensa, em que os populares rejeitavam a ideia de que estavam em guerra, porque esse fora o pretexto de Pinochet para se cometerem todos os excessos. Ao negarem a existência de um estado de guerra procuravam impedir o regresso da violência da ditadura. Ainda assim, morreram pessoas, houve violência e tortura policial.”Destas vivências, o escritor parte para uma reflexão sobre a inevitabilidade do fim, pessoal (também o seu) e coletivo, falando-nos do deserto de Atacama, onde as mulheres continuam a revolver a areia em busca de partes do corpo dos maridos e dos filhos, vítimas da ditadura de Pinochet, mas também sobre a extinção do fim das tribos indígenas, das suas línguas e culturas, o planeta que se afunda, as vidas trocadas por botões, as perdas que nos dilaceram e que não sabemos como enfrentar. Mas, numa nota de esperança, vai-nos dizendo também que não é a cera que fica, mas o que a chama iluminou..Apesar do susto, Afonso não se ficou por Santiago. Ciente de que “mudar de país na América Latina é como mudar de cabine no Titanic” (expressão que intitula o segundo capítulo do livro), andou por outras terras, onde percebeu que “esses países sentem-se uma espécie de colónias dos Estados Unidos, ou de economia norte-americana, e acabam por ser um palco de muita instabilidade.” Mas recolheu ainda histórias antigas, assombradas pela certeza de que tudo o que é sólido se dissolve no ar: “Quando estava na Patagónia, ouvi a história de um nativo que foi trocado por um botão e levado para Inglaterra, onde se passou a chamar Jimmy Button. Acontece que o capitão do navio que o leva da região de Magalhães para Londres é o capitão do Beagle, onde o Darwin veio a ser o naturalista residente. Darwin e Button conheceram-se muito bem porque viveram em conjunto, a bordo do Beagle, quando este último voltou à sua terra. Comecei a estudar e a ler mais sobre o assunto e percebi que o Darwin evolui de uma visão estereotipada do que é o indígena, na sua juventude, e depois vai mudando, tornando-se antiesclavagista, com posições firmes sobre o tema.”Ao longo deste processo, o cientista perde uma filha ainda criança e o próprio comandante do Beagle mergulhará no desespero com a morte da sua mulher. A partir daí, Afonso Cruz reflete sobre a fragilidade da condição humana: “ Tudo na nossa vida é muito volátil, a morte está omnipresente, mas muitas vezes somos incapazes de lidar com isso. Ou então, pelo contrário, damos ainda mais valor à própria vida e àqueles que amamos.”Ante a “ditadura” do efémero, o escritor considera que a arte e a literatura são instrumentos de consolo: “Permite-nos fazer luz sobre um determinado assunto. Quando pegamos num diálogo ouvido na rua e o colocamos no palco de um teatro, estamos a dar atenção a alguém. E eu acredito, como dizia a filósofa Simone Weil, que a atenção é a forma mais pura de generosidade.”Autor de uma vasta obra literária, repartida por diversos géneros (da ficção para adultos ao infanto-juvenil, passando pelo ensaio), ilustrador, músico e artesão de cerveja, Afonso Cruz, que está traduzido para várias línguas, já foi distinguido com diversos prémios de texto e ilustração como o Prémio Autores SPA/RTP, Lista de Honra do IBBY - International Board on Books for Young People, Prémio LER/Booktailors ou o prémio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil do Brasil. Neste momento, concentra o melhor da sua atenção para os vários livros que está a preparar. Entre eles, dois novos relatos de viagem: Um sobre Timor-Lorosae e o outro sobre a Palestina..Re-Read, a livraria que dá nova vida aos livros usados.Fechar a biografia de meio século na Educação."Ainda estou aqui", livro que inspirou filme será lançado em Portugal