No verão de 1972, nas Caldas da Rainha, um grupo de 18 crianças, com idades compreendidas entre os 3 e os 14 anos, integraram uma colónia de férias, para desfrutarem de duas semanas de ar puro e brincadeiras. Mas esta não era uma colónia como as outras, que existiam um pouco por todo o país (como a colónia infantil do jornal O Século, por exemplo), e quem estivesse atento aos gestos de cada um perceberia a estranheza e o mal-estar inicial manifestado por alguns desses meninos.O porquê de tudo isto será explicado em dezembro próximo, em A Colónia, o espetáculo que o encenador e cineasta Marco Martins está a preparar na Culturgest (e que, em janeiro, rumará ao Teatro São João, no Porto). Como nos conta o próprio, tudo começou com um convite para criar uma peça de teatro sobre o 25 de Abril, ainda no âmbito das comemorações do cinquentenário: “O que me interessava era contar uma história que estivesse fora do ângulo habitual de abordagem da Revolução. E comecei a pesquisar.”A resposta a tal demanda surgiu numa reportagem da jornalista Joana Pereira Bastos, publicada no Expresso. “Debruçava-se sobre as vítima silenciosas do fascismo: as crianças, filhas dos resistentes, alguns na clandestinidade, outros presos políticos, e de quem nunca se fala, tal como nunca se reflete sobre as repercussões que essas experiências tiveram posteriormente nessas crianças, ao longo das suas vidas.”Voltemos a esse verão de 1972, em que a chamada Primavera Marcelista não florescia a ponto de acabar com a Guerra Colonial em três frentes e com as perseguições da polícia política aos opositores ao regime. Pouco mais de dois anos antes, a 31 de dezembro de 1969, fora constituída uma Comissão de Socorro aos presos políticos. Tinha como principal objetivo responsabilizar o Governo e alertar a opinião pública, nacional e internacional, para a continuada violação de liberdades e direitos fundamentais pela atuação da polícia política, que levavam pessoas para as torturar e prender arbitrariamente, apenas pelo delito do seu livre pensamento (como se canta no Fado Peniche, de David Mourão-Ferreira, imortalizado por Amália). Esta comissão incluía, entre outros nomes da vida pública e cultural portuguesa, Henrique de Barros, Francisco Lino Neto, José de Sousa Esteves, Ilse Losa, Felicidade Alves, Lindley Cintra, Rodrigues Lapa, Maria Keil, Marta Cristina de Araújo, Óscar Lopes, Raul Rego, Rogério Paulo e Sophia de Mello Breyner Andresen.É, neste âmbito, que, com a colaboração da Amnistia Internacional, são reunidas as tais 18 crianças e adolescentes numa colónia balnear nas Caldas da Rainha. Nela trabalham alguns católicos progressistas como Catalina Pestana (conhecida do grande público como antiga Provedora da Casa Pia) e Felicidade Alves “que têm a preocupação de não deixar que a PIDE entrasse naquele espaço ou perturbasse o sossego dos miúdos. E conseguiram, apesar de se saber que os seus agentes andavam por ali a rondar.”Tudo isto foi, para o encenador, uma revelação: “Eu não sabia quão violentas tinham sido essas infâncias, sobretudo para as crianças que estavam na clandestinidade, afastadas dos pais. São crianças a quem o fascismo roubou literalmente a infância. Algumas não saíam de casa porque estavam na clandestinidade, outras tinham visto os seus pais ser presos à sua frente, outros ainda tinham estado eles próprios com as mães numa cela de Caxias ou Peniche.”.Marco Martins cineasta e encenador com uma extensa obra no campo do cinema, teatro e artes plásticas. Fotografia: Reinaldo Rodrigues.Ao longo da sua pesquisa, Marco Martins falou longamente com alguns desses meninos, como Humberto Candeias, Manuela Canais Rocha ou a jornalista Valentina Marcelino, mas também com resistentes antifascistas, que viveram quer a prisão, quer a clandestinidade, como o casal formado por Conceição Matos e Domingos Abrantes: “Foram conversas muito marcantes. Percebi que muitos destes miúdos, ao chegarem ao grupo, nunca tinham tido contacto com outros, até porque a situação de clandestinidade impedia que vários deles frequentassem a escola ou saíssem à rua durante o dia. Outros, como a Manuela Canais Rocha, que esteve em Caxias, tinham estado presos com as mães durante períodos mais ou menos longos.”O que encontraram na colónia acabou por “ser uma realidade muito mais livre do que a existente numa escola tradicional, integrada no Sistema de Ensino do Estado Novo”, acrescenta ainda o encenador. Ali, tiveram acesso a novas pedagogias, como o Movimento Escola Moderna, muito envolvidas com uma maior autonomia das crianças no processo de aprendizagem. Cantavam canções do Zeca Afonso, sem que alguém viesse proibir.A colónia repetir-se-ia no verão seguinte, no Baleal. Para Marco,“havia ali qualquer coisa de utopia e é muito engraçado perceber que alguns destes meninos ficaram contentes quando aconteceu o 25 de Abril, porque iriam finalmente ter uma vida normal com os pais. Mas outros também ficaram tristes porque deixou de haver aquela colónia de férias.” O passo seguinte, na escrita da peça, foi consultar os processos dos pais, no Arquivo da PIDE, depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Em palco, estarão vários atores, mas também alguns dos protagonistas desta história e jovens sem experiência de representação, um método que é caro a Marco Martins: “Tenho muita vontade de trabalhar com não-atores, pessoas que interpretam um texto, sem mediação técnica, podem criar um impacto muito interessante junto do público.”Até porque há várias sessões dirigidas aos alunos das escolas secundárias, uma experiência que o encenador considera da maior importância no momento histórico que vivemos: “A ideia, que tivemos em determinado momento, de que não era possível voltar atrás, está a ser posta em causa pela realidade, em Portugal, como noutros países. É muito importante que os mais novos ouçam o que realmente aconteceu através de testemunhos diretos.”No “elenco” de A Colónia participam Ana Vilaça, Conceição Lopes, Conceição Matos, Domingos Abrantes, Humberto Candeias, João Pedro Vaz, José Tavares Marcelino, Manuela Canais Rocha, Maria José Matos, Margarida Lisboa, Olga Sequeira Santos, Rita Veloso, Rodrigo Tomás, Sara Carinhas e Valentina Marcelino. A música está a cargo de B-Fachada e João Pimenta GomesEm processo de escrita está ainda um filme sobre o mesmo tema. Embora Marco Martins ainda considere prematuro falar sobre este projeto, sempre vai adiantando que se tratará de uma obra de ficção, mas com uma boa base documental, como já acontecia no seu filme, The Great Yarmouth. A Colónia pode ser visto na Culturgest, de 5 a 14 de Dezembro.