A desertificação cultural
Neste nossa conjuntura pré-eleitoral, que pensam os partidos políticos do estado da cultura? Parecem pensar muito pouco: a palavra “cultura” está sistematicamente ausente dos seus discursos e, não poucas vezes, muitos dos respectivos dirigentes reduzem as suas mensagens a uma mera invenção de “soundbites” capaz de alimentar a vertigem quotidiana que os ecrãs televisivos acolhem ou, nos casos mais tristes, promovem.
Assistimos, assim, a uma rudimentar “profissionalização” da actividade política, agora reduzida a um confronto de frases mais ou menos agressivas, compondo uma sinfonia mediática de conflitos todos os dias renovados e renováveis. Infelizmente para nós, a chamada de atenção do filósofo francês Claude Lefort parece cada vez mais pertinente: “Transformando a política num domínio de pensamento autónomo, as democracias modernas criam condições que predispõem ao totalitarismo.”
Há um novelo de questões que não pode ser reduzido à maior ou menor percentagem de dinheiro disponível para o Ministério da Cultura. Escusado será dizer que tal contabilidade é tudo menos indiferente, mas seria útil procurarmos superar essa outra forma de “pensamento autónomo” que tende a caracterizar os valores do nosso universo cultural (apenas) através dos cifrões de um orçamento.
Lembremos, a propósito, a circunstância de, perante o acomodado silêncio da nossa classe política, o país se preparar para participar na organização de um Mundial de Futebol. Com toda a seriedade, não tenho dúvidas sobre isso, os responsáveis por tal projecto não terão dificuldade em demonstrar os seus méritos económicos. Mas não é isso que aqui se discute — trata-se apenas de constatar que a cultura do futebol triunfou como cultura dominante na sociedade portuguesa.
Pensar esta paisagem cultural e, sobretudo, a desertificação de memórias e valores que a alimenta não é coisa fácil. É verdade que não haverá formas únicas, muito menos unívocas, para o fazer, mas não é menos verdade que fomos esgotando as energias que criámos há 50 anos. Recordo, em particular, uma lição que aprendi com jornalistas como Vicente Jorge Silva e professores como Eduardo Lourenço ou Eduardo Prado Coelho: o pensamento cultural só existe enquanto pensamento transversal a todos os domínios da vida em sociedade. Nesta perspectiva, não é apenas fundamental haver ideias para novas políticas culturais, é também necessário (a meu ver tornou-se mesmo imperioso) pensar culturalmente o exercício quotidiano da própria política. Na certeza de que as televisões, algumas delas enquistadas em modelos pueris de concorrência, podem ter um papel crucial nessa aventura.
Pensar. Mas pensar o quê? Como? E como dizê-lo? Numa cena do filme Viver a Sua Vida (1962), de Jean-Luc Godard, Nana, a personagem de Anna Karina, descobre-se enredada nesse labirinto de inquietações. Dá-nos conta da sua solidão através de um olhar “proibido” — entenda-se: directamente para a câmara —, antes do seu belíssimo diálogo com o filósofo Brice Parain. Como é hábito dizer-se, Parain está a interpretar o seu próprio papel. Karina fala-lhe da dificuldade de transformar os seus pensamentos em palavras: “Sei o que quero dizer, mas no momento de o dizer… não sou capaz de o dizer.”
Que é, então, pensar? Evocando Alexandre Dumas e os Três Mosqueteiros, mais concretamente o romance Vinte Anos Depois, Parain conta a Nana a lenda de Porthos, recordando que ele é “o grande, o forte, algo pateta”. Ou seja, “alguém que, durante toda a vida, nunca pensou.”
Ora, a certa altura é preciso colocar uma bomba num subterrâneo: “É o que ele faz. Coloca a bomba, acende a mecha e, naturalmente, sai a correr. Mas, ao correr, começa a pensar. Pensa em quê? Interroga-se sobre como é possível que possa colocar um pé à frente do outro… Então, pára e não consegue continuar a avançar. Dá-se a explosão, o subterrâneo cai em cima dele. Porque é muito forte consegue aguentá-lo nos ombros, mas ao fim de um dia ou dois, é esmagado e morre. Em resumo: a primeira vez que pensou, morreu disso.”
A fábula, claro, transporta uma lição moral: pensar é perigoso. Resta saber se é possível desenvolver uma política cultural sem correr o perigo de pensar. E também se os partidos políticos estão apostados em comemorar meio século de democracia como se a cultura fosse um item de secretaria e não o território em que se espelham, problematizam e evoluem todas as trocas humanas que fazem um país.