As reposições regulares voltaram a ocupar uma zona importante do mercado cinematográfico. A revisitação das memórias cinéfilas está mesmo a mobilizar um público que, ao contrário do que sugerem as vozes menos atentas, continua disponível para conhecer ou redescobrir tais memórias. Para ficarmos por exemplos atuais, lembremos ciclos que estão a decorrer como a retrospetiva integral da filmografia de António Reis/Margarida Cordeiro ou o panorama de clássicos do cinema de Itália (em Lisboa, nos cinemas Ideal e Nimas, respetivamente). Acontece que o valor das reposições não se mede apenas pela “antiguidade” dos filmes. Daí que valha pena recordar Nick Cave: 20.000 Dias na Terra, uma produção de 2014 que a distribuidora Zero em Comportamento relançou no cinema City Alvalade. Com impacto discreto há cerca de uma década, esta realização de uma dupla de artistas britânicos, Iain Forsyth/Jane Pollard, pode ser definida como uma ilustração insólita, deliciosamente atípica, do modelo tradicional da “biografia de um artista musical”. Regra corrente desse modelo é a sugestão simplista segundo a qual há uma relação automática e determinista entre a história pessoal do artista, o seu envolvimento com a música e, por fim, o sucesso comercial. Mais ainda: sendo o narrador o próprio artista, é suposto acreditarmos que, por um qualquer milagre mediático (e, sem dúvida, anti-psicanalítico), ele ou ela conhece “todos” os meandros da sua existência, sendo capaz de os desmontar como demiurgo encartado do seu retrato biográfico. Nick Cave é alguém cuja pose envolve uma sistemática discussão dessa visão pueril do artista e do trabalho artístico. As suas palavras não podiam ser mais eloquentes: “Quem conhece a sua própria história? Por certo, não faz sentido quando estamos a vivê-la — é tudo clamor e confusão. Só se torna uma história quando é contada e recontada: são as nossas pequenas e preciosas memórias que dizemos e voltamos a dizer a nós próprios ou a outros. Primeiro, criamos a narrativa das nossas vidas e depois impedimos que a história se dissolva na escuridão.” Dir-se-ia que a dissolução dessa escuridão pode ser festiva. Desde logo através da ironia aritmética que o título celebra. Na verdade, Nick Cave fez bem as contas: australiano, nascido em Warracknabeal, a 22 de setembro de 1957, a sua existência aproximava-se dos 20.000 dias na Terra quando rodou o filme - começamos mesmo por vê-lo a levantar-se, apostado em celebrar a passagem de tão sugestiva contabilidade existencial. Ou talvez não... Isto porque o filme, embora documentando “um dia na vida” de Nick Cave, rapidamente se afasta de qualquer lógica banalmente descritiva da sua música. O que, entenda-se, não deixa de conter alguns belos momentos de trabalho de estúdio ou performances de palco, sempre com a companhia do amigo Warren Ellis, parceiro fundamental desde 1983, ano da fundação da banda Nick Cave and the Bad Seeds. Nada disso impede que cada evocação possa envolver tanto de realista como de imaginário. Sintomática é a abordagem do dueto com Kylie Minogue para a canção Where the Wild Roses Grow, do álbum Murder Ballads (1996): numa viagem de carro, com Nick Cave ao volante e Kylie Minogue no banco de trás, assistimos a uma cerimónia privada de dois humanos a caminho de outra galáxia... Com um sorriso amargo e doce, Nick Cave não deixa de reconhecer a desilusão dos que compraram o álbum apenas por causa daquela balada. Uma canção por dia Nick Cave: 20.000 Dias na Terra é um reflexo exemplar da ambivalência com que o cantor/compositor/escritor encara a produção da sua imagem pública. Aliás, o filme pertence a uma galeria, não muito vasta, de filmes (mais ou menos) documentais em que cada protagonista desafia os limites da sua persona mediática — penso no recente American Symphony (Matthew Heineman, 2023), em que o acompanhamento da gestação de uma obra de Jon Batiste se transfigura, devido aos problemas de saúde da sua mulher, num drama eminentemente pessoal; e recordo também o emblemático Na Cama com Madonna (Alek Keshishian, 1991), uma lição modelar sobre a arte de lidar e, mais do que isso, decompor a versão “jornalística” da própria estrela. Tudo isto, convém não esquecer, acaba por gerar um ambiente muito especial: escutamos as canções para lá do seu registo técnico. Compreendemos, enfim, que cada canção pode ser cúmplice de mais um dia em que quem canta transforma os cenários do planeta que partilhamos.