100 anos de Nadir. A obra inédita do pintor nómada no regresso ao Porto

No centenário do seu nascimento (esta sexta-feira), há tanto ainda por descobrir sobre o transmontano que pintava pelas leis da matemática, era bom dançarino de tango e recitava Pessoa de cor. DN republica reportagem publicada em novembro.
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À entrada da galeria da Reitoria da Universidade do Porto, a sucessão de salas afunila o olhar para uma grande e colorida tela, em tons fortes, que sobressai ao fundo, no horizonte. Lá, na terceira sala da exposição que assinala o centenário do nascimento de Nadir Afonso - 100 Anos de Nadir, Inéditos -, exibe-se uma obra enigmática no trajeto do mestre do abstracionismo geométrico e da arte cinética: uma tela de cores fortes até às costuras mostra-nos dois barcos de pescadores, numa praia ladeada de montanha com gente a desfrutar de um pôr do sol cujo laranja intenso deixa adivinhar um dia quente, num qualquer lugar abrasador.

Da Ocidental Praia Lusitana, assim se chama a pintura, é de 2012 e terá um dos últimos trabalhos de Nadir Afonso, que morreria no ano seguinte (dezembro de 2013). Como descreve o próprio texto de divulgação, é uma obra "de difícil catalogação, até pelas grandes dimensões muito pouco habituais no trabalho nadiriano". "É uma obra enigmática", reconhece o curador da exposição, António Quadros Ferreira. "Penso que é mais uma experiência dentro de um espírito de grande inquietação como o de Nadir. E, se repararmos bem, é uma pintura que junta todas as linguagens do seu repertório. Está lá a figuração, e Nadir usou a figuração em várias fases, a abstração, a geometria, ainda que um pouco diluída, a representação... Mas está também um grande simbolismo que o verso camoniano representa", indica.

Assim, Da Ocidental Praia Lusitana é talvez a última ("não sei se rigorosamente a última, uma das últimas seguramente", nota o curador) manifestação artística do espírito de diáspora que atravessou toda a obra nadiriana. Um símbolo do descobrimento, de um sentido de aventura e inquietação que existiu em Nadir até ao fim da vida, mesmo numa idade (morreu com 93 anos) em que as limitações físicas já lhe limitavam o nomadismo.

A obra batizada com um verso camoniano é um dos mais de cem inéditos mostrados ao público nesta exposição que traz Nadir, o nómada que pintou cidades de todo o mundo, de volta ao Porto, "o seu lugar de pertença". Homem de vários lugares e diferentes saberes, pintor e arquiteto que partilhou gabinetes, ateliês e ideias com nomes como Le Corbusier e Vasarely (em Paris) ou Oscar Niemeyer (no Rio de Janeiro), e um viajante impulsivo que procurou sempre o universalismo da sua obra, Nadir Afonso fez parte do grupo dos Independentes da Escola do Porto, que na década de 1940 incluiu nomes como os dos pintores Júlio Pomar e Júlio Resende, ou do arquiteto Fernando Lanhas. "Era, de todos, o mais inquieto. E refletia uma coisa que a Escola do Porto possuía, que era a ideia da integração das artes, um pensamento total", refere António Quadros Ferreira.

Nadir via no Porto "um porto de abrigo", relembra Laura Afonso, viúva do artista transmontano (era natural de Chaves) e diretora da Fundação Nadir Afonso, na primeira sala de uma exposição que arranca com a mostra de 130 estudos inéditos do autor, precisamente desde os tempos da academia, nas Belas Artes do Porto (1938-46), até aos últimos anos de vida, já em pleno século XXI.

Estes estudos passam pelas diversas fases e lugares do seu percurso - e permitem "fazer a ponte entre o pensamento e a obra", sublinha o curador. "É a primeira vez que numa exposição se mostra o itinerário completo da obra de Nadir, através dos seus estudos", refere António Ferreira. "São memórias que ele registava para trabalhos futuros", indica. Afinal, Nadir "só precisava de um metro quadrado para pintar", recorda Laura sobre o mestre cuja primeira "obra" terá sido bem precoce, aos 4 anos, quando pintou a vermelho um círculo perfeito na sala de casa.

Um acaso fez de Nadir arquiteto, quando o então jovem estudante foi ao Porto inscrever-se em pintura na Escola Superior de Belas Artes, em 1938, e quase foi recriminado pelo funcionário que o recebeu: "Como tem o curso dos liceus, o melhor será inscrever-se em Arquitetura", disse-lhe", conta a viúva de Nadir. A "timidez" levou-o a não contestar o conselho. Contra a sua natureza, tornou-se arquiteto, mas o espírito manteve-se sempre na pintura. "Não estava vocacionado para ser arquiteto. Queria fazer algo grande, mas na relação entre ele e a tela, não a gerir uma equipa", considera Laura Afonso.

"Era um arquiteto de cavalete e um pintor de estirador", sintetiza António Quadros Ferreira, sobre essa íntima relação entre as duas disciplinas no universo nadiriano, uma arquitetura de mão livre que conviveu com o rigor geométrico das formas nas telas, onde Nadir Afonso procurava a universalidade das leis matemáticas. "O artista universal - não o artista regional, que segue a originalidade - interessa-se pela exatidão matemática. E são essas leis que procura. Claro que os estetas não estão de acordo com isto", dizia.

A arquitetura "deu-lhe uma subsistência que lhe permitia pintar o que queria", refere Laura Afonso. A arquitetura deu-lhe também a possibilidade de trabalhar com Le Corbusier em Paris, para onde se mudou na década de 1940 e onde conviveu com nomes como Portinari, Vasarely, Candilis ou Picasso. Uma fase de fervor criativo que culminou com a obra matriz do repertório de Nadir: a Máquina Cinética. Única obra não inédita desta exposição, a Máquina Cinética (1956) - uma tela animada mecanicamente num movimento circular cíclico que transpõe a bidimensionalidade da para uma dimensão tridimensional e temporal - "é o manifesto total da obra de Nadir Afonso", define o curador. Esta pintura-instalação, exposta pela primeira vez em 1956, na Galeria Denise René, em Paris, constituiu um "autêntico sobressalto modernista da segunda metade do século XX português", sublinha o texto que acompanha a exposição. "Foi completamente pioneiro, mostrando na altura como, para ele, o futuro da arte seria o movimento", defende Laura Afonso.


A série de trabalhos Espacillimité [espaço ilimitado], da qual a Máquina Cinética é expoente máximo, ocupa a sala 2 da exposição, antecedendo a entrada na pintura de cidades que tanto marcou também o percurso nadiriano - e que aqui está representada com sete pinturas, também inéditas, na terceira sala, onde sobressai então essa inquietante Da Ocidental Praia Lusitana.

"Viajante por impulso", como descreve a viúva do artista, Nadir Afonso alimentava um espírito nómada que tanto o fazia ir até à longínqua Níjni-Novgorod só para apreciar os magníficos edifícios do Volga de que lhe falara entusiasticamente uma amiga russa como, quando estava no Brasil a trabalhar com Niemeyer, viajar até Buenos Aires para ver ao vivo o tango que tanto apreciava. Sim, pois fique-se a saber que Nadir gostava também ele de "dançar o tango", garante Laura, além de "improvisar ao piano" e conseguir recitar de cor muitos dos poemas de Fernando Pessoa, como o "Chuva Oblíqua" com que a cortejou no regresso a Chaves.

Facetas mais intimistas de um mestre de "espírito renascentista com um discurso muito moderno", que pensava "a integração total das artes", descreve António Quadros Ferreira. "Um laboro-maníaco", recorda Laura Afonso, obcecado pela perfeição matemática da pintura (a arquitetura, essa, ficaria definitivamente para trás em 1965, deixando também obras de referência como a Panificadora de Chaves). Uma obsessão que o fazia não raras vezes retocar aqui ou ali a obra exposta, depurando-a até ao absoluto da sua composição. "Se detetava um erro, de que só ele se apercebia, sentia-se nu, exposto, e tinha de ir cobrir a vergonha", refere, apontando um exemplo num dos guaches, estádio intermédio entre os estudos e as pinturas de Nadir, que ocupam a última sala da exposição.



Nadir Afonso, que em 2011 ofereceu uma ilustração para a primeira página da edição de 147.º aniversário do DN, trabalhou praticamente até morrer e deixou uma obra prolífica de mais de 15 mil trabalhos, muitos deles ainda inéditos, como os que esta exposição ajuda a descobrir. "Há muito mais por mostrar", reforça Laura Afonso. O curador António Quadros Ferreira salienta o legado deste "performático do pensamento" para a história da arte portuguesa e realça ser "crucial conhecer Nadir nas suas várias dimensões". "Ele é talvez o único grande modernista português da segunda metade do século XX que tem uma obra ímpar, são raros os artistas que pensam também a sua obra do ponto de vista teórico."

Pensamentos que, no âmbito destas comemorações do centenário do nascimento de Nadir Afonso (4 de dezembro de 1920), vão também pela primeira vez ser todos publicados em português, em quatro volumes de uma coleção editada pela U. Porto Press, além de um estudo do próprio Quadros Ferreira sobre a obra de "Nadir, Mestre de Si Mesmo".

A exposição 100 Anos Nadir, Inéditos é gratuita e pode ser visitada na Reitoria da Universidade do Porto até 23 de dezembro.

Texto publicado na edição do 11 de novembro do Diário de Notícias e republicado esta sexta-feira por ocasião do centenário do nascimento do pintor.

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