"Gostava de ter feito revista, mas nunca me convidaram"

Em 2017, Carmen Dolores tinha 93 anos e deu a última entrevista ao DN. No dia em que partiu aqui fica o testemunho de vida... A voz continuava lá, intacta e imediatamente identificável.
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Começou por dizer poemas na rádio, aos 14 anos, e António Lopes Ribeiro fez dela a Teresa Albuquerque de Amor de Perdição, antes de levá-la também para o teatro. Fez centenas de papéis, em rádio, cinema, teatro, televisão, trabalhou com todos os encenadores e todos os atores. Em 2005, com Copenhaga, deixou os palcos e foi condecorada por Jorge Sampaio. Voltou agora, para a apresentação do livro Vozes dentro de Mim, e o Teatro Aberto encheu-se para vê-la e ouvi-la. A casa está cheia de livros e de recordações, algumas das quais passou a escrito em No Palco da Memória (2013). Passa os dias a escrever - sempre com canetas Futura de preferência verdes -, a interrogar-se e a falar ao telefone com muitos amigos.

Tem saudades das suas personagens?

Tenho, mas elas continuam a estar comigo e são elas que se impõem. Foram elas que começaram, mas ultimamente, talvez porque tenho mais tempo, parece que vêm ter comigo. Muitas frases ficaram para sempre na memória - na minha e na de cá de casa. Frases que dizemos de vez em quando a propósito. Mas as personagens que vêm ter comigo são as do teatro.

Não as do cinema?

Nem da televisão. Comecei a interrogar-me - interrogo-me imenso - e percebi: essas foram as que nunca vi, as que fiz no palco. Tinha a mágoa de não poder criticar o meu trabalho quando as represento. No cinema eu via e ficava arrepiada, na televisão também via - não devo fazer isto, não devo fazer aquilo. Aprende-se muito a ver. Enquanto a pessoa continua a trabalhar, é bom ver para descobrirmos os nossos defeitos.

[citacao:Uma personagem nunca está feita, nem na última representação. Há sempre coisas que faltam]

Achava que tinha muitos defeitos?

Claro, toda a gente tem. Tinha vários defeitos, por exemplo, quando comecei na rádio e começou a haver gravações. Quando eu tinha 14 anos não havia, eram em direto os programas. Ah, que horror, que voz... as pessoas diziam-me na rua "percebe-se tudo o que diz". Porque eu era de-ma-si-a-do ex-pli-ca-da. Isso é defeito, nem oito nem oitenta. Sempre gostei de falar alto desde miúda e não tinha a noção de que me explicava muito.

Convém que se perceba o que um ator diz.

E hoje às vezes não se percebe. Sou muito sensível a isso, quase toda a gente não articula bem. E eu articulava demais. Nos filmes vê-se.

E corrigiu-se?

Fui corrigindo, mas tenho tendência a que não se percam as palavras que digo, é instintivo. Quando sei que estou só em casa, discuto comigo.

Discute ou diz versos?

Discuto. Ou então estou a dizer versos ou leio alto um texto quando escrevo. Tenho dúvidas porque soa-me mal e pode ser que na escrita fique melhor como estava. Estou sempre a emendar.

Quando diz poemas é porque está a ler um livro ou porque lhe ocorre?

Às vezes estou a ler, leio imenso, mais prosa do que poesia. Não leio em voz alta um romance, só uma frase ou outra. Sublinho a lápis as coisas de que gosto. Passado tempo vou ler e já não me lembrava que tinha sublinhado, às vezes leio só os sublinhados.

[citacao:Quanto melhor era a crítica, mais me preocupava: amanhã vêm ver a peça e esperam mais do que posso dar]

Quando está sozinha em casa lembra-se de falas das peças de teatro?

Também. Acordo às vezes de noite e escrevo às escuras. Às vezes sai uma frase de que gosto e tomo nota.

"Aborrece-se alegremente", como cita no livro?

Isso é do Platonov [Tchékhov]. "Aborreço-me alegremente", digo-o com a inflexão dela - minha, mas dela. E o "Está morto?", do Play Strindberg [Dürrenmatt]. Essas coisas vêm-me à ideia e inspiram-me para continuar a escrever. Por exemplo, a Lianor. Gosto muito da minha Lianor do Tà-mar [Alfredo Cortez], foi uma peça que me marcou porque foi das primeiras mulheres do povo que fiz. Toda a gente dizia que eu não podia fazer. Aliás, isso perseguiu-me quase toda a vida. Cada vez que me calhava uma mulher do povo ficava toda contente. É o diferente. Descobri coisas em mim. Há uma coisa que eu digo na Dança da Morte do Strindberg: "Tanta coisa em mim foi novidade." E é verdade: sentimentos que eu nunca tinha experimentado e que fui levada a experimentar.

Como se tivesse vivido várias vidas?

Isso dava-me um gozo extraordinário. Mas tentava não trazer a personagem para casa. Era mais durante a preparação, quando queria encontrar a personagem, que nunca está feita, nunca, nem no último dia da representação. Há sempre coisas que faltam e que se acrescentam.

Lembra-se de algum sentimento que nunca tinha experimentado e que teve de experimentar?

Lembro-me sobretudo desse da Dança da Morte.

De qual das versões?

De qualquer delas. Isso foi um delírio, porque uma era trágica. Era muito mais feliz a interpretar a do ringue de boxe [Dança da Morte em Doze Assaltos, Strindberg/Dürrenmat], porque a outra era mais intensa, era a sério, e aquela não, aquela era quase uma caricatura. Adorava representar. O Augusto [de Figueiredo] fazia aquilo muito bem, e o Álvaro [Benamor], que tinha um papel mais ingrato e menos brilhante do que os outros. Foi uma equipa extraordinária, com o Listopad, que delirava com aquelas coisas e dava liberdade às pessoas.

A criação de uma personagem é uma construção permanente, como disse. E depois como é que se despede, na última representação?

Tenho sempre pena mas tento não ficar agarrada. Acho que o próprio organismo se quer defender. Só me aconteceu isso na Virginia [Edna O"Brien]. Eu já tinha feito a peça dois anos antes e uma vez ia a passar no corredor, o meu marido estava a ouvir rádio e falaram na Virginia Woolf. E eu parei, como quem diz: o que estão eles a dizer de mim? Foi a única vez que me aconteceu com uma personagem, até por ser uma personagem tão rica.

Por ser uma pessoa que existiu e cuja literatura conhece?

Eu tinha uma responsabilidade horrível. É diferente de uma que se cria. Não tinha sentido isso quando fiz a Inês de Castro, era muito distante. Mas a Virginia viveu no meu tempo, ou eu ainda vivi no tempo dela. Foi apaixonante.

Como se preparou?

O Carlos Avillez foi extraordinário porque me deu uma grande liberdade e houve uma enorme colaboração. Havia muita coisa sobre a Virginia Woolf, nós andávamos à procura e dizíamos um ao outro, não guardávamos para nós. Tenho um caderno com tudo o que fiz para essa peça, escrito à mão por mim. Emprestei-o à Carla Maciel, que está a fazer uma pesquisa sobre a Virginia Woolf. Nunca fiz um papel em que trabalhasse tanto. Tinha elementos, não era só a minha imaginação a trabalhar e a estudar a época. Eram coisas dela, porque eram as frases escritas por ela, sentidas, e uma mulher que teve uma vida... Foi de uma grande riqueza.

No entanto, não era uma pessoa com quem se identificasse.

Sim, não tinha nada a ver comigo, mas eu gosto disso. Uma das coisas que mais me deixavam preocupada era quando me diziam "tenho um papel muito bom para ti". Que chatice. Porque era um papel que encaixava em mim, e isso interessou-me sempre menos do que se achassem "isto não é nada para ti". É muito mais apaixonante fazer um papel em que não somos nós.

Revê os filmes que fez?

Não com assiduidade, mas se põem aquelas coisas primeiras do cinema. A Teresa de Amor de Perdição... Fico aflita. Ah, que horror. Como é que eu fiz isto? A tal maneira de falar muito explicada. Fico nervosa sempre que sei que vou aparecer, e quanto mais antiga pior, porque à medida que o tempo vai passando uma pessoa vai trabalhando mais e vai pensando, pelo menos, que tem menos defeitos. Mas há sempre defeitos, noto sempre coisas. Isso nunca me deixou gozar bem o ser atriz. Na época do Avenida tive críticas muito boas, quando fiz A Enteada do Pirandello, O Gebo e a Sombra do Raul Brandão, uma série de coisas. Nessa altura tive talvez das melhores críticas da minha vida. Havia crítica no dia seguinte em todos os jornais e íamos a correr comprar. Quanto melhor era a crítica, em vez de eu ficar toda contente - claro que gostava - ficava preocupadíssima a pensar: "A pessoa que vai ver amanhã a peça espera muito mais do que eu posso dar."

A sério?

Isto é autêntico, não é falsa modéstia. Agora, quando vejo essas críticas penso "realmente que bonito, como eu devia ter ficado feliz nessa altura"...

É perturbador fazer novamente a personagem?

É bom, porque nunca é igual. E quando se gosta é muito bom. Eu ficava sempre triste quando acabava uma peça, mesmo que fosse algum papel de que a princípio não tivesse gostado. Como se fosse uma amiga que eu deixasse de ver.

E como se sai de uma personagem para entrar noutra?

Pode ser rápido. Na época do Avenida, fazia rádio de manhã, ensaiava uma peça à tarde e representava outra à noite. Não sei como aguentei, fisicamente. Numa altura estava a fazer A Vida de Nossa Senhora na rádio, um folhetim do Miguel Trigueiros, à tarde O Gebo e a Sombra, uma mulher do povo, e à noite a prostituta do Pirandello.

Diz a certa altura no seu livro: "O velho ator chega uma hora antes." Chegava uma hora antes?

Chegava três quartos de hora antes, nunca chegava em cima da hora. Mas esse era o caso do Luís Santos, um ator antigo com quem trabalhei no Teatro Aberto, n"O Cerejal, do Tchékhov, ele
fazia Firs, o mordomo. Quando eu chegava ao teatro ele já estava pronto para entrar em cena e andava pelos corredores, já vestido da personagem. Aprendi com o Benamor, no Nacional, a ler o texto antes do ato. O Álvaro fazia sempre isso. Lia o texto antes de entrar em cena. Quando era muito grande, como a Virginia, lia em casa, à tardinha.

A Carmen não fez o Conservatório, entrou diretamente.

Comecei pela rádio, foi a minha escola - nem era escola, ninguém me ensinou. O meu irmão António ensinou-me uns versos. Ele também foi ator, não a tempo inteiro mas por amor. Foi com ele que me estreei na rádio. Tínhamos uma grande diferença de idades. Depois fui aprendendo com os encenadores.

Nunca sentiu a falta do curso?

Sentia o complexo de não ter estudado. E comprava todos os livros de técnica teatral, sobretudo franceses.

O seu marido gostava de teatro?

Muito e isso ajudou-me imenso, porque ele compreendeu sempre a minha atividade e instigava-me.

A sua família nunca foi contra?

As amigas da minha mãe diziam que eu ia ser expulsa do Filipa [Liceu Filipa de Lencastre] por estar a fazer cinema. Mas foi um sucesso, as professoras adoraram, ainda por cima era um livro que toda a gente conhecia. Perguntavam-me: "Que cena fizeste hoje?" Faltava imenso às aulas porque ia às filmagens.

Foi natural ser atriz?

Foi, embora eu não tivesse pensado ser. Aconteceu graças ao Lopes Ribeiro. O António é que me inventou, como ele dizia.

Como é que ele a descobriu?

Eu estava a dizer poemas na Renascença, numa emissão infantil do Papagaio com o José Castelo, onde conheci a Lourdes Norberto. Um jornalista amigo disse que ia haver um grupo de amadores estudantes que se iam reunir no SNI, no Palácio Foz, e perguntou-me por que não ia lá. O presidente do júri era o António Lopes Ribeiro. Eu disse um poema, o "À Virgem Santíssima", do Antero de Quental, depois ele pediu-me para ler um bocadinho do Auto da Alma. Perguntou-me o nome e eu disse Carmen Dolores. E ele disse: que extraordinário nome de cartaz!

Porque é mesmo o seu nome.

Costumo dizer que foi por isso que ele me convidou para atriz, porque gostou do nome. Passou um ano e eu continuei na minha vidinha. Um ano depois apareceu numa festa no Eden Teatro e perguntou: "Não se importa de aparecer amanhã na Tobis?" O meu irmão, que andava sempre comigo - nessa altura não se andava sozinha - ficou muito entusiasmado: "Se calhar é um filme, o António Lopes Ribeiro é realizador." Que disparate, não acredito. Fui à Tobis e ele mostrou-me uma folha com o cartaz do Amor de Perdição e lá estava o meu nome. O António era assim. Quando metia uma coisa na cabeça... Foi ele que me trouxe para o teatro, eu não queria ser atriz. Acho que fui para o teatro para não o contrariar.

Como reagiu?

Disse que era um disparate, que não era capaz e não estava interessada. Cheguei a casa e a minha mãe ficou alarmadíssima. O meu pai já tinha morrido. Mas os meus irmãos ficaram todos contentes e acharam bem, e assim foi.

Não foi estranho começar no Amor de Perdição entre atores consagrados?

Senti-me bem, estava contente por ter essa companhia. O meu pai [José de Matos Sarmento de Beja] era jornalista e crítico teatral.

Foi do Diário de Notícias, aliás.

Foi chefe de redação do Diário de Notícias, quando o Eduardo Schwalbach era o diretor. Traduzia peças para a Palmira Bastos, para a Amélia, para a Lucília Simões, com quem me estreei n" Os Comediantes. Os atores eram quase pessoas de família. As minhas colegas quando falam da Amélia Rey Colaço dizem a senhora dona Amélia, e eu digo "a Amélia", porque era assim que se dizia lá em casa. Não é falta de respeito.

Como a tratava no Teatro Nacional?

Dizia senhora dona Amélia, respeitinho. Mas lá em casa eram a Amélia, o Robles, o Assis. Tinha curiosidade de ver como eram. Sempre fui observadora, calada. Havia certas atitudes que me chocavam, era um meio diferente do que eu conhecia. Falo um bocadinho disso no livro mas fui cortando, cortando para não magoar, sobretudo sobre os que já cá não estão. Depois comecei a conhecer as pessoas, a ser camarada com elas e ambientar-me.

N" Os Comediantes de Lisboa tinha aqueles monstros sagrados todos.

Estou a escrever com o Vítor Pavão dos Santos a história desta companhia. Os únicos novos éramos eu, o [Igrejas] Caeiro, um dos galãs da companhia, o Zé Amaro, e uma pequena que deixou o teatro. O resto era tudo os grandes - o Nascimento Fernandes, a Josefina Silva, o António Silva... Estreei-me numa peça em que ele fazia de meu marido, um senhor de barbas muito bom, muito mais velho. Vinha carregado e era um velho casado com uma jovem que se dizia que era a mulher mais descarada de Atenas - eu. Adorei fazer isso porque era uma falsa ingénua e eu vinha do cinema, sempre a fazer aquelas que morriam tuberculosas.

Sempre leu muito?

Sempre. O Dostoievski para mim era o máximo. Li Recordações da Casa dos Mortos com 13 anos, Júlio Dinis aos dez. O meu pai não gostava que os filhos fossem aos bastidores do teatro, é curioso. Era um homem desempenado, muito da I República, amigo do António José de Almeida, mas noutras coisas era fechado. Mas nas leituras não, e achava que os livros cor de rosa faziam mal e nem havia lá em casa - M. Delly, Max du Veuzit, que as minhas colegas no colégio liam. Portanto comecei a ler os grandes escritores muito cedo, talvez cedo de mais.

Gosta muito de música e de pintura.

Mais de pintura que de música. Acima de tudo sempre esteve a palavra - o teatro e e literatura - e a pintura. Vivi sete anos em Paris e passei tardes inteiras na Orangerie. Na altura foi inaugurado o Centro Pompidou, passei lá dias extraordinários. Tenho desgosto por não ter jeito para desenhar, para pintar. Costumava dizer que quando fosse velhinha ia começar a desenhar, mas ainda não cheguei aí... Prefiro escrever, talvez tenha mais habilidade.

Lembro-me de contar que gosta de dizer poesia no meio das árvores, a andar pelos bosques.

Sozinha. Adoro, é a coisa de que mais gosto. Fazia muito isso em S. João da Caparica, temos lá um apartamento. Isolada de tudo e de todos. Normalmente é a poesia que me vem à ideia.

Sabe muita poesia de cor?

Agora menos, mas de vez em quando vem-me à ideia. E gosto muito de cantar, desde miúda. Quando o meu pai era vivo, tínhamos camarotes reservados nos teatros todos e havia muita revista. Havia muita coisa e eu via tudo. Vendiam as coplas, as letras das canções, e eu trazia para casa e decorava.

Anda pela casa a cantar?

Sim, sempre cantei. E canto no banho.

E cantou em palco?

Não, infelizmente. Cantarolava a Canção de Solveig na Dança da Morte - "O inverno pode ir-se embora, a primavera passar" [a cantar]. Mas não é esse género que canto, são as canções populares, disso é que eu gostava. Gostava de ter feito revista, nunca fiz. Nunca ninguém me convidou para fazer revista. Mas também se me convidassem era para fazer uma coisa que não me interessava, para aqueles números patrióticos como fazia a Irene Isidro. Gostava era de cantar canções populares se fizesse revista, como cantava a Milú - "Modesta florinha, das mais populares" [a cantar]. Sei todas as dos filmes portugueses, sei todas. "Três corpetes, um avental, sete fronhas e um lençol, três camisas do enxoval que a freguesa deu ao rol" [a cantar].

Tem uma vida muito cheia mas ao mesmo tempo muito tranquila.

Muito fechada. Nunca gostei de reuniões mundanas, isso era horrível. Era um sacrifício enorme quando tinha de ir a qualquer sítio. A minha defesa era observar e tirar alguma coisa dali.

Estar rodeada de tantas recordações deve ser muito enriquecedor.

Acho que é, ajuda-me a não envelhecer, ou a tentar não envelhecer. A minha memória é muito visual e quando escrevo estou a ver tudo o que escrevo, e dizem-me que se nota isso. O João Lourenço começou cedíssimo comigo, com doze anos, no filho da Inês de Castro, e ainda conheceu muitos dos atores - a Josefina, o António Silva, o Assis, o Villaret, foi dirigido pelo Ribeirinho várias vezes. Ele diz que quando lê os meus livros está a ver aquilo tudo. Há poucas pessoas que tenham começado tão cedo e que conheçam esses atores. Hoje a maior parte das pessoas não sabe quem foi a Lucília Simões.

Ou a Maria Lalande.

Que foi fantástica. A Lucília entra n" A Vizinha do Lado [Lopes Ribeiro, 1945], ainda no outro dia estive a ver e delirei. É dos melhores papeis do António Silva. O António Lopes Ribeiro, como tinha a companhia de teatro [Os Comediantes] quando fazia os filmes ia buscar os atores à companhia.

Os Comediantes foram a sua escola?

A minha escola foi mais o Nacional. No Nacional estive à volta de sete anos, n" Os Comediantes foi época e meia, porque casei e deixei o teatro. Deixei porque quis, estava cansada, e entretanto nasceu o Rui. O Robles Monteiro telefonava todos os anos lá para casa a convidar-me para o Nacional, e eu dizia "muito obrigada mas não quero fazer mais teatro, senhor Robles". No terceiro ano, foi o Victor que atendeu e ele perguntou-lhe por que é que não me deixava trabalhar. E o Victor respondeu que achava que eu devia trabalhar, eu é que não queria. Foi o Victor que me convenceu a voltar ao teatro. E então estreei-me no Nacional, onde fiquei sete anos, e continuei a minha carreira até ao Copenhaga.

Não queria mesmo voltar?

Achava que a rádio era suficiente, era o meu grande amor. Depois também houve a fase da televisão e eu também não queria, por uma questão de fotogenia, porque eu tinha a mania que não era fotogénica - e não sou. Uma pessoa fotogénica é uma pessoa que fica bem sempre, como a Milú, por exemplo. Para que é que me ia estrear na televisão? Ainda por cima o ecrãzinho aqui todos os dias. Quem me convenceu foi o Paulo Renato e então comecei uma carreira de que não estou nada arrependida e aprendi imenso.

A televisão tem outra técnica?

Sim, e eu gosto de televisão. Sobretudo teatro. Ainda fiz duas ou três novelas e acho que é um bom treino para um ator. Não sou nada contra as novelas. Mas gostei sobretudo de fazer teatro na televisão, fiz coisas muito bonitas. Está quase tudo apagado, é uma pena. Aprendi muito e reconciliei-me com a minha imagem. Foi a época da minha vida em que fui mais bonita, mais fotogénica, e já tinha mais de 40 anos. Devo muito aos operadores de imagem. Sentia-me muito à vontade.

Há algum papel que gostasse de ter feito e nunca fez?

Gostava de ter feito a Hedda Gabler [ Ibsen] e A Dama das Camélias [Alexandre Dumas].

E Shakespeare?

Na rádio fiz tudo, naquelas adaptações. No teatro só fiz a Helena do Sonho de uma Noite de Verão, ainda no Nacional, e depois fiz no Teatro Moderno de Lisboa, o Dente por Dente, com o António Pedro a encenar.

Conheceu toda a gente, até foi dirigida pelo António Pedro!

Foi a única vez que trabalhei com ele. Nós convidámo-lo no Teatro Moderno e ele aceitou vir por pouco dinheiro.

Foi uma aventura, o Teatro Moderno, de que foi fundadora. Aí teve uma participação diferente, não era apenas atriz.

Foi doloroso porque eu era a gerente. Jurei para nunca mais, não tínhamos dinheiro. Mas valeu a pena e ficámos muito ligados. Ainda ontem esteve cá o Armando Caldas, que era do grupo, como a Clara Joana e o Rui Mendes, os meninos do meu tempo. Agora tenho outros - o Diogo Infante, a Natália Luiza, a Alexandra Lencastre.

Vê-se logo se alguém é um bom ator?

Pode não se ver logo. Com o José de Castro foi logo. Estava no Nacional a fazer o São João subiu ao trono, do Carlos Amaro - foi o único travesti que eu fiz, fazia o príncipe. Era preciso um rapaz para o S. João. Estávamos a conversar lá atrás e: "espera, deixa ouvir, este rapaz é bom". Era o José de Castro. Ele ficou na companhia e ainda foi meu galã no Amor à Antiga [Augusto de Castro].

Pensa na morte?

Não, só penso que um dia será e que se Deus quiser será de repente. Pode ser que quando chegar a altura me assuste. É melhor a pessoa desaparecer do que estar a sofrer.

Devem dizer-lhe isto 500 vezes por dia: ninguém diria que tem 93 anos.

De cabeça não sinto a idade, mas fisicamente não sei, sempre tive alguns problemas. A minha mãe foi excecional - perdi o meu pai aos 15 anos e ficámos em muito más circunstâncias materiais. Como era bastante forte, tinha desgosto de ter "uns filhos magrizelas". Não sei se veio daí, mas sempre tive o complexo da magreza.

Li no seu livro que vê uma pessoa no público e fica a pensar como será a vida dela.

Penso muito nisso. Em Paris ia ao teatro e como não conhecia os atores pensava o que seria a vida deles, "o que terá feito antes de vir para aqui?" E o mesmo quando passo na rua. Quando andava no Metro, observava as pessoas, ao fim de um dia de trabalho, cansadas. Tenho vários contos e coisas escritas sobre isso. A minha sobrinha diz que tenho de publicar um livro com esses contos, mas não se justifica. Para as memórias tenho desculpa, é uma atriz que conta a sua vida. No livro No palco da memória tenho uns textos desse género.

São umas crónicas.

Não têm o valor da crónica. Eu sou muito exigente. Tenho muita coisa escrita, ainda ontem estive a escrever.

Não para.

Esta cabeça não para e às vezes é cansativo.

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