O regresso à normalidade poderá trazer uma subida exponencial das queixas de violência doméstica. É isso que esperam os especialistas e o governo, tanto mais que os números que durante o estado de emergência se mantiveram estáveis foram registando aumentos ligeiros à medida que o desconfinamento avançou.."O boom de denúncias deve surgir depois de 1 de junho, na terceira fase do desconfinamento, quando a maioria das pessoas vai voltar para a rua, para os seus trabalhos", diz Daniel Cotrim, psicólogo e responsável pela área de violência doméstica e de género da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Que razões poderão levar a que isto aconteça? Daniel Cotrim explica: "O confinamento foi vivido para muitos agressores como uma lua-de-mel, com a ideia mágica, fantasiosa, de que a vítima está ali para eles sempre, que está controlada. Quando elas voltarem a sair, a trabalhar, deixará de ser assim." Também a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade acrescenta outro argumento para o crescimento de casos: "Nos primeiros tempos do confinamento, a necessidade era sobreviver, organizar a vida em relação ao medo do covid. A partir do momento em que a preocupação de sobrevivência se desloca da saúde, há uma maior capacidade mental destas mulheres para retomarem o projeto de se libertarem da violência", diz Rosa Monteiro..As estruturas nacionais de apoio às vítimas de violência doméstica estão a preparar-se para o que possa surgir quando os agressores deixarem de ter as suas vítimas debaixo de asa - com as vítimas a retomarem a sua vida normal, a trabalharem, a insegurança e os ciúmes dos agressores crescem - e a violência virá atrás.."A situação de confinamento é um aliado excecional dos agressores, permite-lhes ter tudo sobre controlo. Passado este período, muitos especialistas têm receio que o cenário seja um aumento exponencial de casos, já que o agressor se depara com a perda de controlo da situação", acrescenta a Rosa Monteiro..257 vítimas acolhidas durante o confinamento.Durante o período de desconfinamento, houve uma monitorização quinzenal dos casos de violência doméstica, que por ser excecional, não permite comparações com períodos homólogos. Além disso, a rede nacional de apoio a vítimas de violência doméstica manteve contacto com os casos de maior risco e, sempre que se justificasse, com atendimento presencial. "Houve necessidade de dar garantia a estas mulheres que quem as acompanhava continuava ali. Algumas equipas estabeleceram uma regra, uma hora para um contacto, para garantir que estava tudo bem.".Aumentaram também as necessidades de apoio psicológico e de literacia, nomeadamente para explicar as medidas criadas pelo Governo de apoio à família e ao emprego, refere a secretária de Estado..O crescimento dos contactos e pedidos de ajuda começaram a sentir-se nestas últimas semanas. De 19 de março a 17 de maio, as linhas de atendimento da CIG receberam 482 contactos, através de telefone, email e da linha de SMS 3060 criada durante o estado de emergência para as vítimas confinadas com os agressores..Entre 30 de março e 10 de maio foram acolhidas 257 mulheres pela rede nacional. A maioria das mulheres que entraram em casas de abrigo durante o confinamento, em situação de emergência, revelam, contudo, um perfil diferente das vítimas de violência doméstica. "Trata-se de casais onde já haveria alguma disfuncionalidade, com conflitos experienciados por estarem 24 horas juntos, a que se juntaram por exemplo os problemas económicos, e que geraram situações de violência", explica Daniel Cotrim, da APAV.."Quero liberdade!".O psicólogo adianta que estas mulheres saíram de casa, mas que mostraram o desejo de retomar a casa, percebendo-se que a violência foi provocada por o casal estar em confinamento. "Nestas situações, não havia registo de conflitos na história das suas vidas. Os casos foram referenciados à rede de apoio à vítima e à Comissão de Proteção das Crianças e Jovens em Risco..Um dos fatores que permite aos técnicos perceber se são mulheres que anteriormente já eram vítimas de violência doméstica diz respeito à forma como elas falam do seu futuro e de como pretendem refazer a vida quando entram nas casas de abrigo. Percebem-se que saíram de casa agora, mas que isso poderia ter acontecido meses antes..É o caso de Fernanda, 54 anos, que deu entrada num abrigo no início de abril, a centenas de quilómetros do local onde há mais de 30 anos vivia com o marido. Uma vida sujeita a violência psicológica constante - o marido não lhe batia (aconteceu no dia em que decidiu bater com a porta), mas era controlada, perseguida, não podia falar com ninguém....Fernanda, que fazia limpezas em casas particulares, não sabe o que será da sua vida daqui para a frente, mas tem uma certeza: "Quero liberdade!".A neta nasceu e o avô ficou com ciúmes.Os ciúmes que o marido sentia, até dos irmãos de Fernanda, a desconfiança, impediram esta mulher de ser feliz. Há dois anos, com o nascimento da neta, a situação piorou com as exigências de atenção e as comparações com a menina. O que devia ser uma alegria para os avós tornou-se num inferno - os ciúmes da criança levaram o marido de Fernanda a fazer-lhe a vida negra. "Quando fui a tribunal foi a procuradora que disse as palavras que eu não tinha dito: "o seu marido tem ciúmes da neta?""."Dizia-me para falar com o filho que a menina não podia estar lá em casa tanto tempo, perguntava-me porque não lhe fazia a ele o que fazia à menina", conta Fernanda para quem o cheiro a álcool que o marido ultimamente começou a transportar para casa não era de quem tinha bebido só uma cerveja.."O que estás a fazer aí? Porque estás a lavar os dentes? Porque cumprimentaste aquela pessoa?", eram perguntas que o marido lhe dirigia, exercendo um controlo absoluto sobre os seus movimentos mais rotineiros..O desejo desta mulher é estar perto do filho e da neta. Mas para casa e para o marido garante que não volta:" Tenho nojo dele, não quero aquela casa!"