Na apresentação no Tivoli, no LEFFEST, disse que abordou este processo de estreia como realizador com muita alegria. Geralmente, ouvimos os realizadores a falar de dificuldades... Foi uma alegria. Claro que também foi difícil, mas isso já o sabia...Muitos atores que começam a dirigir delegam muito. No meu caso, não. Acompanhei a montagem em todos os momentos, para mim só poderia ser desta maneira. Estive sempre alegre e contente a tentar solucionar problemas, aliás, fazer um filme é resolver problemas, a torto e a direito...Tenho que ter sempre uma resposta, tal qual como na vida real. E o melhor na realização é que soluciono problemas com os outros e em conjunto é sempre melhor..Mas sentiu-se também um prazer, um entusiasmo quando no final falou com o público. Senti um elo com o público. Nestes casos, estou a falar com quem não conheço de algo que partilhei. Interessa-me muito perceber como reagiram, se foram tocados. Fiz este filme para comunicar certos sentimentos e ideias..Destaquedestaque"Fazer um filme é resolver problemas, a torto e a direito...Tenho que ter sempre uma resposta, tal qual como na vida real"..Ao mesmo tempo, é um filme que lhe é muito pessoal e que nos faz pensar nos nossos pais. Falling permite essa ligação, sim, quanto mais não seja porque é sobre um pai que não quer ter uma ligação com o filho. No fundo, talvez ele queira, apenas não entende o desejo de conexão do filho, sente que é um ataque... Por um lado, o facto de ter esperado muitos anos para me deixarem filmar permitiu que evitasse erros de principiante. Há 20 anos tinha tomado decisões horrorosas na preparação. Sabe, aprendi muito com os realizadores que sabem filmar. Sou daqueles atores que muitas vezes iam para o plateau mesmo quando não tinham que trabalhar - não sou de ficar no camarim, quero sempre ver o que se passa nas filmagens. Por que razão a câmara está aqui e não ali? Porquê a lente é 50 e não outra? Acredito que podemos sempre melhorar..E deve ter aprendido com Lisandro Alonso, o seu nome aparece nos agradecimentos. Por outro lado, David Cronenberg, com quem tem trabalhado, surge como ator... Sim, mas eis dois cineastas que não poderiam ser mais diferentes culturalmente. São cineastas que não contam uma história da mesma maneira nem entendem o cinema da mesma maneira. O que têm em comum é a boa comunicação com as suas equipas. Trabalham ambos com muita tranquilidade e aí são parecidos. Enfim, prestei atenção àquilo que aprendi, mas escolher o David como ator foi do interesse do filme - gosto da maneira dele representar, ele já tinha feito umas coisas..O Viggo Mortensen realizador foi exigente para o Viggo Mortensen ator? Só atuei por razões práticas. Ter o meu nome como ator ajudou no financiamento e era mais fácil pois já tinha trabalhado com o protagonista, o Lance Henriksen. Demo-nos muito bem, mas fiquei preocupado pois quando atuava não podia controlar o plano. A sorte é que o filme estava bem preparado, sabíamos de antemão o que fazer. Acabou por não ser difícil, ao estar na cena como ator acabo por também estar presente como realizador. No começo, estive algo nervoso pois tinha a cabeça a pensar em muitas direções..Destaquedestaque"Gosto muito do ideal do trabalho coletivo, mas em Falling, devido às dificuldades de financiamento, tive de fazer muita coisa.".Antes de ser realizador, também fez música, aliás compõe a música para o filme, escreveu livros, fotografou e pintou. Esse seu lado de homem da Renascença ajudou-o também no trabalho de cineasta? Não quis que tudo viesse das minhas ideias. Aqui, a responsabilidade final é minha, mas quis trabalhar com todos. Gosto muito do ideal do trabalho coletivo, mas em Falling, devido às dificuldades de financiamento, tive de fazer muita coisa. Quanto à composição musical, foi também prático ser eu -- quis, antes de mais, algo simples. Na verdade, evitei pagar salário ao compositor, ao argumentista e ao produtor....Sinto que este argumento tem algo de conto, uma qualidade literária... Sente que poderia resultar como obra literária, para além do confinamento enquanto guião de cinema? Na verdade, a base foi um conto que escrevi. Sim, pode funcionar como um conto. Mas quanto mais vejo o filme começo a pensar que também poderia resultar numa peça de teatro, sobretudo porque tem cenas longas..Podemos dizer que estar aberto para muitos estímulos é o mais importante para um artista? Em muitos encontros com a imprensa fala da sua paixão com o futebol. Sim, futebol é uma das coisas que me acompanha toda a vida, desde que tenho memória. Faz-me lembrar quando descobri também a nossa mortalidade, foi numa conversa com a minha mãe. Aí percebi que um dia teria de morrer. Agora, com a pandemia acontece um fenómeno interessante: as pessoas ficaram com uma consciência melhor da fragilidade e incerteza da vida. Mais do que nunca temos de apreciar a beleza da vida! Dessa consciência da mortalidade nasce em mim um desejo de criar, foi assim desde criança! Tenho este instinto de usar o tempo que tenho. Freud bem dizia: se queres viver, prepara-te para a morte". Isso é tão positivo....Aqui, a personagem do pai é um exemplo de um atual extremismo. Claro que tem conotação direta com a América de Trump, mas é muito mais do que isso... Sim, estamos a viver tempos em que as pessoas não têm medo de falar abertamente com linguagem misógina, homofóbica e racista. É também uma pandemia...Qualquer história de relações familiares pode ser vista como um microcosmos da sociedade. Ao escrever este argumento durante a campanha de Trump em 2015 e 2016 percebi que o filme poderia funcionar a esse nível, nomeadamente como reflexo de uma polarização e abordar os problemas de comunicação na sociedade. Mas esse vírus sempre existiu e não é apenas na América..Sai-lhe do coração este Falling, obra de estreia na realização para Viggo Mortensen, ator, poeta e nómada cultural, aqui a filmar o embate entre um pai idoso e o seu filho gay. Um reencontro familiar que traz traumas familiares que abordam o preconceito e o racismo americano. Viggo tem dito que se inspirou nesta história a partir do funeral da mãe e que muito do que aqui se vê é resultado das suas memórias de infância..De certa maneira, é um filme magoado, uma teoria sobre raiva escondida e a maneira como existem barreiras no amor paternal. Carregado de "flashbacks", Falling usa e abusa de um predicado de exposição de ódio, como se este patriarca fosse o fiel depositário de todo o ódio da América. Por vezes, chega a ser pouco engenhosa essa descrição de uma América extremista, embora em tempos recentes faça todo o sentido. Onde o trabalho de Viggo se salienta, para além da direção de atores que permite que Lance Henriksen tenha toda uma vistosa capacidade de fogo, é nas subtis dimensões de melodrama, muitas das vezes pontuadas com um centro de equilíbrio emocional assaz poético. Falling não é o típico drama de Hollywood sobre reconciliação e cura espiritual, é antes sim uma dura jornada de dor e culpa feita por um cineasta que acredita que visualmente pode interceder achados de beleza visual com as mais profundas vísceras da miséria humana. Uma boa estreia de um artista total..dnot@dn.pt