É com surpresa que se ouve Viet Thanh Nguyen pronunciar o nome do escritor português António Lobo Antunes e maior ainda com o agradecimento que quer deixar nesta entrevista: "Quero partilhar consigo uma coisa... encontrei-me com António Lobo Antunes na entrega de um prémio em Itália [o Bottari Lattes Grinzane / 2018], tomámos o pequeno-almoço juntos e dei-lhe um dos meus livros traduzidos em português, o Refugiados. E disse-lhe que o seu romance Os Cus de Judas [The Land at the End of the World, nos EUA] teve uma influência enorme em O Simpatizante. Sei que ele é muito ocupado, mas pode ser que um dia me leia. Sempre achei que O Simpatizante era uma tentativa falhada de imitar Os Cus de Judas... ponha isso na entrevista, que sou fã dele e que lamento que o leitor norte-americano não seja capaz de o perceber - o que é uma tragédia.".Não é por acaso que Viet Thanh Nguyen evoca a obra de Lobo Antunes, afinal os seus dois livros têm um intenso paralelo com Os Cus de Judas, como referiu a revista The Paris Review na recensão: "Visões caleidoscópicas do Portugal moderno assustado pelo passado fascista e as guerras sangrentas em África". Viet esclarece: "Eu li o livro várias vezes entre 2011 e 2013, quando o usei como a minha pedra de toque para escrever o meu romance. Se a maior parte da literatura é um café fraco e a boa literatura um café forte, Os Cus de Judas é um expresso bem forte. Vou continuar a falar deste livro até encontrar quem diga que o leu.".Enquanto Lobo Antunes tira a máscara à guerra colonial e impõe uma nova leitura da guerra portuguesa em África, Viet pretendia executar o mesmo sobre o conflito que dividiu o Vietname e que se reduz em duas palavras: imperialismo e colonização. Em O Simpatizante, o "inimigo" é os Estados Unidos, em O Comprometido o cenário é a França. Os personagens não são como o militar de Lobo Antunes, mas, no primeiro, um espião refugiado na América e, no segundo, um dealer de droga que sobrevive desse negócio em Paris. Porquê dar essa profissão ao protagonista, pergunta-se: "Não é um absurdo, porque ele vive num submundo que pode ser comparado ao da política e dos políticos. Os verdadeiros e perigosos criminosos não são os que estão nas esquinas a vender drogas, antes os governos e os países que estão comprometidos com este negócio. Os franceses plantavam ópio na Ásia para financiar o seu império e os Estados Unidos estão envolvidos em complexas manobras que alteram a história de muitos países.".Viet Thanh Nguyen nasceu no Vietname em 1971, de onde a família foge em 1975 com a queda de Saigão [atual Ho Chi Minh]. Desde então vive nos Estados Unidos, onde foi primeiro acolhido num campo de refugiados, a que se seguiu um percurso de vida que o leva à literatura e ao ensino na Universidade do Sul da Califórnia. Em 2016, recebe o Pulitzer com O Simpatizante. Pode-se caracterizar O Comprometido como um romance de memórias em segunda mão é a questão que dá início à entrevista: "Creio que este livro e o anterior, O Simpatizante, são escritos a uma certa distância porque são confissões escritas após os acontecimentos. Não as diria em segunda mão, porque os personagens viveram estas experiências e por isso fazem parte das suas próprias memórias. Há muita distancia em termos de tempo entre a vivência e o relato, mas a recordação do autor é crucial para a forma como a história é contada.».Viet refere profusamente a palavra confissão no livro. É impossível não a frisar? "Sim, para mim é impossível esquecer esta palavra porque fui criado como católico por pais muito devotos e com um sentido de pecado e de culpa sempre presente naquela forma de viver. O mesmo se passa com o narrador deste romance e aquilo que lhe era mais difícil confessar no romance anterior, O Simpatizante, por ter tido uma educação comunista. Neste, O Comprometido, ele não é obrigado a confessar-se, mas há uma compulsão para o fazer. Há uma luta nele próprio para tomar consciência do que fez a outras pessoas no Vietname e daí que confessar-se seja muito importante. Enquanto escritor, apesar de o livro ser um romance, tenho em muito o suporte na tradição da confissão na literatura ocidental, a começar por santo Agostinho ou Jean Jacques Rousseau. Ele tenta compreender desse modo o que fez no passado..Pode dizer-se que a nostalgia está sempre presente nas vidas do protagonista e de muitos que o rodeiam é a conclusão. "Concordo. Eles são soldados e refugiados e em vários aspetos recorrem muito à nostalgia; seja do país que abandonaram, o Vietname, seja pelo sentido de irmandade de quem lutou junto na guerra - e a nostalgia é muito importante para o refugiado. É, literalmente, o sentimento de saudade de casa habitual nos que perderam os seus países, no entanto esses combatentes também sentem saudades da guerra em que lutaram, o que é muito irónico porque são momento bastante terríveis. A sua guerra foi o que os definiu enquanto jovens e depois como homens, daí que a nostalgia esteja muito presente. Há uma fase no livro que explico em muito esta sensação, a de quando eles recordam como eram jovens e puros", explica..Ao ler-se a parte da fuga dos norte-americanos de Saigão em 1975 é impossível não a comparar ao recente abandono do Afeganistão pelo mesmo país. Para alguém que vive desde jovem nos Estados Unidos, esta não é uma dúvida: "Absolutamente. Escrevi antes um ensaio sobre essa situação para o The New York Times após ter visto as imagens dos civis em Cabul e revi as mesmas sensações dos momentos após a partida norte-americana do Vietname. há um paralelo nas duas situações, mesmo tendo em conta que as realidades são diferentes, porque de ambas as vezes os Estados Unidos persuadiram e coagiram afegãos e vietnamitas a participar numa guerra que não era dirigida por eles e quando decidiram que chegava, apenas partiram. Aliás, muitos veteranos sul-vietnamitas que foram abandonados em 1975 referiram essa sensação de se reverem no que se passou no Afeganistão em jornais norte-americanos.".É o que se pode comprovar na página 61, quando há esta acusação: "Os americanos partiram quando a população mais precisava deles". Foi isso que quis deixar registado, de que ninguém esqueceu Saigão em 1975 décadas depois, pergunta-se: "O livro passa-se em 1981 e nessa época ainda ninguém tinha esquecido esses acontecimentos. Estavam muito vivos, tanto na memória americana com na dos refugiados vietnamitas da diáspora. Nesse ano houve outra situação que fez regressar tais memórias, a fuga em barcos de muitos vietnamitas do país [452 barcos com 15 479 refugiados] para a Tailândia. É esse momento o início deste romance, por via de imagens que foram difundidas em todo o mundo. Se a guerra estava bem fresca na memória, a tentativa de fazer com que as coisas pareçam resolvidas foi infrutífera pois as repercussões continuam por muitos anos.".Citaçãocitacao"Considero que o humor é muito importante por permitir aos leitores descansarem da tragédia da guerra que os atravessa. No entanto, o humor surge dessa tragédia, porque a maioria das piadas são rudes e de raiva ao reconhecer o que aconteceu e a hipocrisia com que se viveu.".Questiona-se a Viet se a guerra do Vietname é mais lembrada na perspetiva dos que a perderam e se o seu objetivo com ambos os livros é dar uma perspetiva mais vietnamita do conflito: "Espero que sim. O Simpatizante foi considerado por muitos como um romance sobre a guerra do Vietname, mas a razão porque escrevo sobre esse assunto tem muito mais a ver com o outro lado da questão, e que é muito importante: o poder do imperialismo e o colonialismo. Que é uma presença constante na história dos EUA! A continuação num segundo livro tornou-se importante porque a colonização é um fenómeno global e não queria que os leitores achassem que o primeiro era apenas sobre a guerra do Vietname, mas que estes livros são sobre imperialismo e colonialismo e como os EUA e a França - onde se passa O Comprometido - a têm praticado. Essa é a minha preocupação, por que o caso do Vietname está também em muito ligado à colonização francesa.".Para Viet não existem grandes diferenças entre estes dois colonialismos, como esclarece: "A ironia é que ao falar-se das piores coisas que os EUA fizeram ao longo da história, centramo-nos sempre nesse país. É importante recordar, mas não se pode esquecer a importância de outros países na opressão dos vietnamitas, como é o caso de França. O que os franceses fizeram na Indochina foi muito mau - e o mundo quase esqueceu porque branqueou esses acontecimentos. Eles foram muito bem sucedidos na representação que fizeram perante o mundo, romantizando o seu colonialismo no Vietname, e é uma versão só tornada possível porque a atenção é concentrada na guerra dos americanos nesse país. Em O Comprometido tento mostrar os efeitos do colonialismo francês e retirar a preponderância desse fator de sedução.".O facto de centrar a narrativa deste segundo romance em Paris, criticando abundantemente a esquerda "caviar" francesa, não esquece o dia a dia da imigração para sobreviver na cidade. Viet não queria continuar a ação nos EUA, porque o seu desejo era confrontar o protagonista com a sua herança francesa, por parte da família: "Queria incluir esta cidade sem os estereótipos que mais se conhecem dela, o de ser a "Cidade Luz? e também a idealização que os turistas americanos fizeram dela. A intenção foi focar o imigrante e o refugiado na vida parisiense, descrevendo o peso do império francês, do qual resulta uma marginalização de quem não é branco. Era fundamental apresentar este lado de Paris, que demonstra a presença de uma realidade colonialista e racista ainda válida.".A pátria de grande revolução, a Francesa de 1789, seria assim o melhor cenário para impor um debate sobre os desvios das revoluções, o desaparecimento dos seus ideais e de nunca serem o que se sonhava? "É verdade, raramente as revoluções são o que se sonha. A revolução faz parte da natureza humana e do desejo de se transformar a sociedade, é um impulso humano natural, mas o que também é um impulso é querer-se sempre complicar e por isso destruir os sonhos. Olhamos para qualquer instituição que se criou - a igreja católica, a universidade - e veem-se nelas a reunião os melhores e os piores impulsos. E quando o assunto é revolução, presta-se muita atenção ao falhanço da revolução comunista, por exemplo, como em Cuba, no Vietname, na União Soviética ou na China, mas não se repara o suficiente nos falhanços das revoluções democráticas - como a francesa e a americana. Ambas foram nobres e idealistas, que de alguma forma resultaram para parte da população de França e dos EUA, mas também ficaram extremamente comprometidas com o que os dois países fizeram, por exemplo, aos não-brancos no seu território ou no ultramar. Não é por acaso que se veem em ambos os países grandes confrontos com as pessoas de cor e os refugiados. Estes meus romances mostram muitos dos fracassos dessas revoluções, mas há sempre uma esperança porque se acredita na necessidade de revoluções que acrescentem mudanças sociais.".A leitura deste par de romances faz prever a possibilidade de um terceiro livro. Será assim? "Sim, quero um romance que feche esta narrativa. O Comprometido é sobre o trauma do protagonista após o que aquele de O Simpatizante fez. Alguém que experimentou o pior e acha que bateu no fundo, mas o pior ainda está para acontecer. Se no segundo ele está à beira do abismo, no terceiro irá descobrir que ainda há algo debaixo do bater no fundo. Irá regressar aos EUA e confrontar-se com ele próprio. Afinal, ele é um homem com dois pensamentos e duas caras.".Será essa duplicidade do segundo protagonista autobiográfica? A resposta não demora muito a ser dada: "Posso dizer que sim... a narrativa dos dois romances não é autobiográfica, mas o ponto de vista da perspetiva tem muito de mim. Não é por acaso que estou a escrever umas memórias e o título que lhe dei é "O homem com duas caras". Posso dizer que criei o personagem de O Simpatizante a escutar-me." Serão estes dois livros um alívio das próprias recordações? "Creio que para mim era necessário escrever estes dois romances, em parte para lidar com as minhas memórias pessoais de ter crescido a viver nos EUA enquanto refugiado, e também da presença constante destes três países: França, Vietname e Estados Unidos. Não que sejam a minhas memórias exatamente, mas o que liga estes países à guerra do Vietname, e o que nelas existe de prazer e de tristeza. Escrever foi, de alguma forma, um alívio pois pude reformular de forma artística as vozes que ouvia", responde..Uma das características deste romance é conter uma mistura de muito humor com um intenso drama. Seria necessário para dar uma personalidade própria à narrativa, questiona-se: "Creio que sim. O leitor ri em ambos os romances, tal como eu ri enquanto os escrevia. Considero que o humor é muito importante por permitir aos leitores descansarem da tragédia da guerra que os atravessa. No entanto, o humor surge dessa tragédia, porque a maioria das piadas são rudes e de raiva ao reconhecer o que aconteceu e a hipocrisia com que se viveu. Contudo, não vale a pena ficar zangado com tudo isso, também se pode rir e assim compreender melhor o que aconteceu.".Para o fim resta uma pergunta crucial para alguém muito crítico para com a "personalidade" imperialista e colonialista com que define os Estados Unidos. Escreveu a maior parte deste O Comprometido durante a era Trump, seria a escrita mais satisfatória com Biden? "Acho que seria a mesma coisa. Numa perspetiva global, não existe assim uma tão grande diferença entre Joe Biden e Donald Trump. Poderá existir em termos de comportamento, mas no que respeita ao exercício do poder são quase iguais. A América não está muito interessada na forma como o mundo a vê - faz parte do privilégio de ser um poder imperial -, mas enquanto refugiado preocupo-me com o modo como os EUA se comportam fora das fronteiras. Daí que, apesar de muitos americanos quererem acreditar, a realidade não se alterou assim tanto com Biden. Aliás, quando se pensa como se pode ir de Obama para Trump, facto que deixou muitos americanos confusos, eu não tenho dificuldade em o compreender. São apenas dois lados da mesma contradição americana: ser uma democracia construída sobre a colonização, o genocídio, a escravidão e a guerra. Realidades que ainda não desapareceram e que Trump bem representa. Biden apenas dá uma pequena volta a essa contradição, porque os EUA continuam a realizar essas práticas colonialistas na atualidade. Se Trump regressar em 2024, será uma tristeza, mas não passa de mais um passo na história americana, em que não trará nada de novo a não ser a repetição do que já aconteceu na nossa história. Por isso mesmo, o terceiro volume desta narrativa torna-se mais necessário", conclui..Viet Thanh Nguyen.Editora Elsinore.430 páginas