Uma versão de Cinderela para millennials
Era uma vez uma jovem princesa chamada Ella, cuja mãe, infelizmente, morreu. O pai voltou a casar e depois também bateu a bota, deixando a Ella sob a tutela da madrasta.
A madrasta era... não exatamente «má», uma palavra tão relativa no Reino das Fadas, com todo o sangue, crueldade, roubo de recém-nascidos e etc. a ela associados. Mas nem as BFF da rainha conseguiam negar que ela se situava no lado mau do espectro.
Não podendo com a Ella, atribuiu-lhe um lugar de criada de copa e elevou as suas duas filhas à posição anterior da enteada, designando-as princesas herdeiras. Por volta desta altura, uma série de decisões desastrosas relacionadas com investimentos provocou um crash financeiro no país e, de súbito, a família real deu consigo sem dinheiro vivo.
A nova rainha, que não era parva, já passara para os ativos digitais e a gestão de marcas. Tinha também trocado um par de florestas tinhosas por um bloco de escritórios acabado de construir no badalado monte Silicon - a única parte do reino impenetrável à recessão. Nesses escritórios, a rainha instalou as duas meias-irmãs da Ella, a Olga e a Guilhermina, respetivamente 92 como CEO e CFO da empresa. É triste ter de dizer que estas duas tratavam a empresa como o seu reino privado, comportando-se autoritariamente com os desgraçados dos empregados e granjeando assim a alcunha conjunta de «as meias-irmãs feias». (A fealdade referida era espiritual e não uma referência à sua aparência - com a qual esta história não tem nada que ver e nunca é mencionada.)
Num golpe de inspiração, a rainha pôs a Princesa Ella a trabalhar como estagiária não remunerada da empresa. Deste modo, poderia aborrecer e humilhar a rapariga ao mesmo tempo que poupava uns trocos. Esperava-se que a Ella trabalhasse dezasseis horas por dia a limpar o edifício, a gerir o economato e a receber e descarregar entregas. Na altura em que decorre esta história, o mais forte produto da empresa era, de longe, os shots de carvão ativado (servem para beber).
Os shots estavam a conhecer grande sucesso e eram vendidos em várias cadeias de distribuição, incluindo o Pingo de Fogo e o Minicesto. Nos últimos anos, a empresa registara um crescimento sólido de dois dígitos nos quatro quadrantes e era indicada pelos conhecedores como força dominante (se não mesmo futura arrasadora em termos percentuais) num mercado em franca expansão. Pelo menos, foi o que a Ella ouvira alguém dizer enquanto mudava o toner da fotocopiadora.
A andar para cima e para baixo no elevador de serviço durante todo o dia, a Ella ficava horrivelmente suja e coberta de pó e cinzas. Começou a ouvir os outros referirem-se a ela como «Cinderela», o que lhe agradou. Afinal, era um nome adequado. Acabou por pensar em si própria como Cinderela. 93 - Querida? - disse a Olga uma tarde, a espreitar à porta da secção de descargas. - Desculpa pedir-te, mas podias pôr a minha mensagem «ausente do escritório» por mim? Tenho de sair a correr para o fim de semana prolongado. - Claro - disse a Cinderela, vinda de trás de uma grande palete. - E pões também a da Guigui? - (Era o diminutivo da Guilhermina.) - Eu não consigo mesmo. És um anjo. O que vais fazer neste fim de semana? Alguma coisa agradável? - A Olga lançou um olhar ao telefone, depois cheirou o ar, não querendo ficar com pó nas unhas ainda a secar. - Ah, não - respondeu a Cindy. - Há uma entrega grande este fim de semana. Tenho de estar cá. - Não vais ao baile do príncipe? - A Olga estava escandalizada. Mas também empolgada.
A Cinderela era, de longe, a maior concorrente à mão do Príncipe Encantado, e ali estava ela a dizer que não conseguiria ir ao baile do aniversário dele. Praticamente todas as donzelas elegíveis do continente tinham sido convidadas. Então ocorreu algo à Olga que fez o seu coração galopar a um ritmo feliz. Seria possível que, por a Cinderela ter trabalhado durante tanto tempo nas entranhas daquele edifício, as pessoas se tivessem esquecido de que ela pertencia à realeza? - Só se o príncipe em questão quiser vir ajudar-me a descarregar trinta e duas paletes para a secção F - respondeu a Cindy. - «Para os ímpios não há paz» - recitou a Olga condoidamente.
- Mas, ainda assim... - Procurou desesperadamente um lado positivo.
- É pago a dobrar, não? - Se fosse pago, penso que seria, sim - respondeu a Cinderela. No escuro, a Olga não conseguiu encontrar uma resposta para isto nem distinguir a expressão da meia-irmã. A pausa começou a alongar-se e fê-las ficar nervosas. - É melhor voltar ao trabalho - acabou por dizer a Cindy. - Bom trabalho - disse a Olga. Depois, sentindo que a observação poderia parecer lamechas, acrescentou rapidamente: - É mesmo preciso que alguém trate daquela sondagem para a reunião sobre a eliminação do papel nos nossos procedimentos.
- Eu trato - disse a Cindy. - É facílimo.
- E a minha impressora está outra vez avariada, para variar. Consegues arranjá-la? - Sim, posso fazer isso também - respondeu a Cindy. - Fixe! - disse a Olga, recuando. - Emoji sorridente, emoji triste, emoji de beijo, adeeeus!
A Cinderela sentou-se no lusco-fusco da secção de descargas e soltou um suspiro de alívio. Eram cinco e meia e em breve o escritório ficaria deserto - poderia então deitar mãos ao trabalho. Mas primeiro subiu aos gabinetes das meias-irmãs, no último andar, para pôr as mensagens de ausência do escritório. Reparou que um maço demasiado grosso de folhas entupira a impressora da Olga, por isso, retirou-o e tornou a ligar o aparelho. Depois desceu à área de descargas. Acendeu o candeeiro do seu pequeno cubículo e lançou-se ao estudo para a licenciatura em Direito que ninguém sabia que ela andava a tirar. Às sete, espreguiçou-se, 95 bocejou, ligou a chaleira e fez uma sopa miso instantânea. Beberricando-a e contemplando o fim de semana à sua frente, sozinha no escritório, estremeceu de prazer.
Por volta das dez, demasiado cansada para se aventurar a ir de bicicleta no escuro para casa, foi deitar-se na sua cama de campanha. Chegada a manhã, pôs-se de novo à secretária. Encarregou-se da entrega quando esta chegou, por volta da hora de almoço, depois saiu e caminhou ao longo do canal ali perto, sentou-se ao sol, comeu as suas sanduíches e regressou ao trabalho. Várias horas depois, quando o sol do final de tarde desapareceu da janela do seu cubículo, a Cinderela estendeu a mão para virar o candeeiro para o livro que estava a ler. Mas este não estava aceso. Voltou-se, perguntando-se de onde viria então a luz que via.
À sua frente, suspensa a meia altura e rodeada por um halo brilhante, estava uma mulher de aspeto fantástico, bem entrada na meia-idade. Tinha uma varinha mágica na mão. Sorria amistosamente. A Cindy levantou-se e caminhou até junto dela. - Quem raio é você? - perguntou. - Minha querida - disse a aparição -, sou a tua Fada Madrinha. - Ainda bem, chiça! - exclamou a Cinderela. - Pensei que estava com um tumor no cérebro. - Minha linda - admoestou a outra -, essa linguagem não é própria de uma senhora. - Pois não - retorquiu a Cinderela. - Eu não sou uma senhora. Isto chocou tanto a Fada Madrinha, que a sua luz se apagou e ela caiu de rabo com um grito.
- Como podes dizer uma coisa dessas? - perguntou ela, levantando-se e esfregando a parte dorida. - É fácil - disse a Cinderela. - O que é que tem a ver com isso? - Sou a tua madrinha! - Então sou batizada? Isto não está um bocadinho confuso, culturalmente? - Não nos metamos por esses terrenos pantanosos neste momento - disse a FM. - Quero que sejas feliz. É minha função fazer isso acontecer. - (Meu Deus, isto doeu.) - Sente-se - disse a Cinderela, puxando de uma cadeira de escritório e limpando-lhe o pó. - Está com um ar exausto. - Isto é exigente, sim - admitiu a FM. - Esta treta de pairar, suspensa. Mas os miúdos adoram... Devo dizer que é bom encontrar alguém normal, para variar. Obrigada. Oh! - guinchou ela quando a Cindy lhe serviu um brandy. - Eu não devia, a sério. Afinal, tenho de voar até casa. Mas faz-me bem à saúde... O brandy desapareceu e o copo voltou à mão da Cinderela num ápice.
- Bem, deixa-me ver se percebo - disse a Cinderela enquanto servia outro brandy, desta feita enchendo mais o copo. - Para que é que preciso de uma fada madrinha? Isto está a parecer-me uma coisa barata da loja da esquina, já que falo do assunto. Ou restos de fábrica. - Mas faz o seu efeito, ou não? - perguntou a FM. Bebeu o segundo copo de um só trago e devolveu-o à Cindy com um arroto profundo e um risinho. - Se queres saber a minha opinião, concordo. Os padrinhos são para bebés. Mas não sou eu que decido. O que eu sei é que tenho de ir às moradas que estão no registo diário antes de despegar do trabalho. - Mas eu sou uma princesa - insistiu a Cinderela. - Tenho privilégios enormes. Saem de mim como suor. - Contudo, aqui estás tu, completamente coberta de lixo, a trabalhar todas as horas que Deus dá - disse a Fada Madrinha. - Isso é porque eu gosto que seja assim - disse a Cinderela, começando a zangar-se. - Não compreendes? Podia acabar com isto amanhã mesmo, se quisesse. Mas é importante para mim perceber o significado do trabalho árduo e experimentar o valor de algo que se mereceu. Estou a tentar fugir ao privilégio injusto e a trabalhar para um mundo melhor. Devias era ir ajudar uma rapariga pobre que trabalhasse numa fábrica e sem perspetiva de futuro. Ajuda uma carrada delas. De preferência, uma geração delas!
- As pessoas admiram-te - disse a FM. - Não quero que me admirem. Quero que gozem as suas próprias vidas! - Bem, se calhar, é por isso que te admiram tanto... - Vendo o esgar de nojo no rosto da Cinderela, abandonou aquela linha de argumentação. - Ouve - disse a FM -, tanto quanto consigo perceber, as forças lá de cima são tão conservadoras como as forças cá de baixo. Mas talvez possas usar isso para fazer a diferença. Porque hoje à noite há um baile... Príncipe Encantado... - NFI - disse a Cinderela. 98 A Fada Madrinha fez um gesto largo com a mão. Ouviu-se o som distante de pingentes de gelo a entrechocar e um convite apareceu na sua mão. - Não vou - teimou a Cinderela. - Um parvalhão fruto de consanguinidade a pavonear-se à frente do seu buffet sexual privado?
Enquanto o seu Proxeneta Geral anota os nomes das mulheres que ele considera adequadas a serem engravidadas por si? Não é uma noite divertida, segundo os meus padrões. Também há um desfile em fato de banho? - Como queiras, queridinha - disse a FM, erguendo-se e enchendo o copo com água fria. Olhou em torno da área de descargas. - Mas deixo-te o kit de festa, para o caso de mudares de ideias. Fez novo gesto largo com a mão no ar enquanto bebia, e um vestido de noite surgiu, pendurado nos garfos de uma empilhadora próxima. Num lampejo, no chão ao lado do equipamento, apareceram também sapatos a condizer. - O baile já começou, por isso, chamei uma carruagem especial para te levar lá. Está lá fora à espera. - Tirou a garrafa debaixo do braço da Cinderela e afastou-a ao comprimento do braço. - Um para o caminho? Talvez seja melhor não - disse ela. - Sobe direitinho à cabeça depois de um dia longo, não é? Espero que não haja muito trânsito lá em cima, senão ainda me meto em sarilhos. Puxou de uma forma amarela das profundezas misteriosas da blusa e piscou os olhos para ela. - Oh, bolas - disse ela. - Ainda é um esticão. - Ajuda os pobres, idiota! - disse a Cinderela.
A FM agitou a varinha e ficou a pairar no ar. - Vou sugerir isso ao meu superior técnico - disse ela. E desapareceu. A Cinderela suspirou, cansada, e regressou ao seu estudo. «Atribuírem fadas madrinhas a pessoas como eu», pensou. «Que treta pegada!» Aquilo só a fazia ter vontade de trabalhar ainda mais arduamente, para ajudar as pessoas que viviam em bairros pob... - Ah, esqueci-me. A Cindy deu um salto. A FM pairava de novo acima de si. - Se fores ao baile, há uma condição: tens de sair de lá à meia-noite, senão corre tudo mal. E agora são... já passa das sete! Gaita! A princesa Verónica já vai estar deitada. - Com um olhar de profunda concentração e um ruído sonoro de foguete, a FM desapareceu uma vez mais. Não sabendo se o barulho de foguete se tinha ficado a dever a uma função mágica ou a um processo biológico, a Cindy escapuliu-se para a casa de banho próxima, procurando esquivar-se a um potencial fedor. Apanhou o vestido e os sapatos ao passar. Na casa de banho, ergueu o vestido à sua frente, vendo-se ao espelho. E pôs os sapatos à frente do vestido. Lavou as mãos e a cara. Secou-as. Ergueu de novo o vestido. Não lhe ficava completamente mal. Olhou-se mais demoradamente ao espelho. E os sapatos.
A última vez que fora a um baile ainda o pai era vivo. - Podia ser divertido - admitiu para o seu reflexo. Quando a Cindy saiu da área de descargas para a rua para chamar um ogre, lembrou-se de que a fada malcheirosa tinha mencionado algo sobre ter mandado um táxi. Infelizmente, era impossível ver se tinha aparecido, pois um parvalhão antissocial qualquer deixara o que parecia um abacate de três toneladas no meio da rua. - Minha senhora - disse uma voz. A Cinderela deu um salto. Depois ergueu o olhar e viu um chauffeur idoso sentado no cimo do abacate, segurando umas rédeas. Seguindo as rédeas, viu quatro cavalos que, de algum modo, lhe tinham passado despercebidos. Abriu-se uma porta num dos lados do abacate e a Cinderela entrou, aturdida.
Não entrar pareceria falta de educação. Então, com um estalar do chicote, o abacate-carruagem iniciou a sua marcha pela rua, lançando a Cinderela violentamente contra o estofo do banco. De um dos lados do assento havia uma gama fabulosa de maquilhagem - batom, rímel, sombra de olhos, blush - assim como um espelho e uma cadeira. Tudo aquilo estava fixo num eixo cardã, para o tornar imune aos solavancos da carruagem. (Uma previdência sublime.) Habitualmente, a Cinderela não ligava a maquilhagens. Era mais uma coisa com que as mulheres tinham de se preocupar e os homens não. Afinal, o Príncipe Encantado pensaria ter feito um esforço se alguém lhe limpasse do bigode a maior parte do caviar da refeição anterior. Mas, olhando para o vestido e os sapatos espetaculares, sentiu que eles mereciam algum acompanhamento, por isso, lançou-se ao trabalho. No momento exato em que pensou que estava tudo pronto (embora, num mundo perfeito, ela tivesse tomado um banho como deve ser e não se tivesse limitado a esfregar vigorosamente os sovacos com um toalhete de rosto), a carruagem deteve-se. A Cinderela envergou a máscara que o chauffeur lhe estendeu enquanto a ajudava a descer da carruagem. Nunca uma gorjeta fora tão merecida, mas ela não tinha um único cêntimo e pediu muita desculpa.
- Um destes dias, pago-lhe uma cerveja- disse, dando- -lhe uma palmada no ombro. Ele inclinou impercetivelmente a cabeça para ela e depois fundiu-se com o cenário. Ela ergueu o olhar para o local da festa, um palácio cuja fachada estava iluminada (e perfumada) por mil velas artesanais coloridas. Inspirou profundamente e começou a subir a escadaria larga, ignorando com determinação o tremor nas pernas. Passando pelos guardas carrancudos mas educados, viu-se no interior, que não era menos intimidante. Sala de baile gigantesca. Música gloriosa. Pequenos canapés incríveis, que a Cinderela não conseguiu impedir-se de engolir em grandes quantidades, não fosse não aparecerem de novo. E, para onde quer que se olhasse, um copo de vinho gaseificado em cima de uma salva de prata. - Olha só para o dinheiro desbaratado em trapos finos que aqui vai. LOL - gritou, sobre o barulho da música, à primeira convidada que veio falar com ela. A mulher ficou petrificada e recuou. «Tu é que perdes, querida», pensou a Cindy. Apesar de querer desesperadamente evitá-lo, era óbvio que a Cindy fizera sensação. Para onde quer que se virasse, via grupinhos a cochichar e depois a olhar para ela. Não daquela forma mesquinha e vitoriosa que conhecia do trabalho. Isto era outra coisa.
Na verdade, a Cinderela só aceitara o convite para ter um vislumbre do mundo contra o qual lutava. E também, talvez, para ver como as irmãs se davam mal, pois, na verdade, tinham zero sentido de estilo. Contudo, dando conta deste pensamento, repreendeu-se por isso. Mas espera! Ali estavam elas. Hum... Não estavam assim tão mal... e era melhor pôr- -se a léguas delas, não fosse reconhecerem-na. «Bem, agora já as vi», pensou a Cinderela. «Já tive o meu momento de diversão. Talvez só mais um canapé... nham. E mais um copo. Depois saio...» Olhando, por acaso, de novo para as meias-irmãs, reparou em algo estranho. Estavam ambas de olhos esbugalhados, o olhar a atravessar a pista de dança num movimento firme e inabalável e dirigindo-se mesmo... a ela? - Importa-se que lhe peça para dançar? - Gulp. - A Cindy tossiu um pouco de champanhe pelo nariz. As lágrimas assomaram-lhe aos olhos ao tentar engolir em simultâneo o champanhe e o canapé. Não costumava ficar tão perturbada com as atenções de um homem, mas ele apanhara-a distraída, a pensar noutra coisa. - Claro, como queira - disse ela. - Mas aviso-o já: cheiro mal. Ele não reconheceu aquilo como um obstáculo. Pegou- -lhe nas mãos e arrastou-a de imediato ao som da música, num esplêndido (ela reconhecia-o) um-dois-três-um-dois- -três.
- Não gosta de dançar? - Havia uma agradável vibração de baixo na voz dele. - Nunca experimentei - respondeu ela. - Pensei sempre que era uma perda de tempo. - E o que faz, em vez disso? - Como bebés - disse ela. - Assalto velhinhos. Mas só os mesmo fracos. - É divertido? - Serve para passar o tempo. Cuidado com os pés, raios! - Na verdade, os meus pés estão onde devem. E o que pensa agora sobre dançar? Ele era um bailarino exímio. Depois do tropeção inicial, tinha conseguido que a Cindy se sentisse como se também ela fosse. Guiava-a com uma segurança delicada que a fazia sentir como se ela própria se conduzisse. As luzes rodopiavam um pouco. O champanhe suavizava tudo. Ou aguçava. - O júri não está cá - disse, percebendo que tinha a boca próxima do ouvido dele.
Captou um ligeiro cheiro de colónia vindo da pele masculina. Aquilo era completamente exótico para ela. Bem, não admira, em comparação com a eau de toner de fotocopiadora... - É divertido, acho - disse ela -, mas sem sentido. - Não vejo como é que passar tempo consigo poderá alguma vez ser desprovido de sentido. No rodopiar rítmico da música e da dança, a Cindy achou irritantemente difícil pensar na resposta inteligente seguinte. Por isso, ficou em silêncio durante uns momentos, nos quais os movimentos de ambos e a música tornaram difícil pensar no que quer que fosse.
- Não faz ideia de quem sou - disse ela, por fim. - Na verdade, tanto quanto sei, eu posso realmente comer bebés. Dançar com alguém durante cinco minutos não é uma base sensata sobre a qual construir uma relação. - Estamos a dançar há meia hora - corrigiu ele. Naquele passo da dança, era necessário que ele inclinasse o par para trás e se debruçasse sobre ela. A postura tinha certas conotações e, nesse momento, ela ficou sem ar. Quando ele preencheu por completo a sua visão, as luzes da sala deixaram de o revelar como falso ou grotesco. De facto, os traços que ela julgara atraentes ao longe eram ainda melhores vistos ao perto. O príncipe inclinou-se ainda mais para ela e a sala mergulhou subitamente num silêncio mortal. Podia ter-lhe dado um pontapé nos tomates, mas, como membro da família real, fazer isso poderia começar uma guerra entre os dois países. A Guerra dos Tomates do Príncipe até soava bem, mas ela decidiu que era melhor não a iniciar. A segunda opção era beijá-lo e usufruir do momento, visto que ele era todo bom. Mas ele assumiria isso como um compromisso. E em frente de todos aqueles palermas snobs? Nã. A terceira opção que tinha era dizer: «Ei, lá porque entrei aperaltada na sala e até me lavei, não assumas isso como parte da tua história. Até posso ser a mulher perfeita (faço o meu melhor), mas não sou a mulher perfeita para ti. Mesmo que estivesse interessada, e por espantoso que te possa parecer, tenho a minha própria vida. Não estou nem perto de me sentir tentada a largar tudo para ser o teu brinquedo favorito durante umas semanas ou uns meses. Os tipos como tu não veem as mulheres como seres complexos, mas apenas como aparições que os complementam ou melhoram. Portanto, adeusinho.»
Mas não era o momento nem o local para um grande discurso. Além disso, ele talvez interpretasse aquilo como se ela quisesse que se esforçasse mais. Não. Havia uma maneira muito mais simples e eloquente de dizer o mesmo. O Príncipe Encantado (pois claro que era ele - facto confirmado pelo modo como a congregação recuara para os cantos da sala para ver os dois a dançar) ficou paralisado quando a Cinderela se esquivou agilmente ao seu abraço e se afastou dele, atravessando o salão de baile. «Oh, gaita», pensou a Cindy. «Agora é que estraguei tudo.» Tentando parecer descontraída enquanto abria alas pela multidão e se dirigia à porta, lançou uma olhadela ao relógio e viu que faltava um minuto para a meia-noite. - Saiam da frente, parvalhões presumidos! - exclamou.
- Deixem passar! Mal saiu pela porta, tirou os saltos altos e desatou a correr descalça. Contudo, no cimo da grande escadaria exterior, escorregou desajeitadamente na carpete e caiu. Ao desabar no chão, pareceu-lhe vislumbrar o príncipe por entre as pernas dos convidados, a olhar, triste, na sua direção. Mas não havia tempo. Pôs-se de pé num salto, desceu a rua a correr e venceu com dificuldade a porta do abacate mágico que se lhe apresentou (ora aqui está uma frase que não se escreve todos os dias). Ficou estendida no chão, a ofegar, até ter a certeza de que eles já não se viam. Reparou que parecia ter perdido um sapato. Mas, naquele momento, essa era a menor das suas preocupações. Ainda sem fôlego, trepou para o assento e instalou-se no meio das almofadas, grata por ter escapado. Estava mesmo a começar a interessar-se pelo conteúdo do minibar a bordo, quando... - Humph! A carruagem explodiu. Estou a brincar. Voltou a ser um abacate. E as roupas da Cinderela voltaram a ser uns farrapos (ou, pelo menos, umas calças de ganga muito sujas e rasgadas), e a maquilhagem que tinha usado desapareceu, assim como o cocheiro e os cavalos. Ficou sentada na rua, ao lado de um abacate maduro. Uma caminhada e ar fresco iam fazer-lhe bem. E ainda tinha um abacate para se retemperar.
- Hurraaa! - disse ela. E perguntou-se se as pessoas ainda diziam aquilo. Na segunda-feira seguinte, havia grande falatório no escritório sobre o Príncipe Encantado, que se contava seguramente entre os mais excitantes de todos os reinos. (Havia uns quantos mais atraentes, é verdade, mas tendiam a interessar-se muito por homicídios. Ou pénis.) Dizia-se que o príncipe tinha ficado obcecado com uma pessoa que conhecera no seu baile de aniversário no sábado anterior. O falatório era de tal ordem que alguém do escritório chegou mesmo a mencioná-lo à Cinderela, que era pessoa com quem geralmente ninguém falava.
- Que loucura - disse ela. - Quem será? - Aparentemente, desapareceu. E ninguém sabe quem era! - Uuh! Isso é demais! Bem, eu não sou, com certeza, isso é garantido! - disse a Cinderela. Amaldiçoou-se por ser tão má a improvisar quando estava nervosa, mas acabou por não fazer mal, pois ninguém lhe prestou atenção nem a ouviu. Mesmo que tivesse gritado do telhado (ou, ainda pior, tivesse enviado um e-mail a todos os funcionários da empresa) a admitir que era a miúda misteriosa, ninguém teria acreditado. De facto, aquilo teria provavelmente convencido as pessoas de que ela não estava, de todo, a dizer a verdade.
A Cinderela regressou tranquilamente ao seu trabalho. A última ronda de despedimentos tinha acrescentado a entrega do correio às suas funções e ela ouvia muita galhofa deliciosa enquanto empurrava o carrinho da correspondência de gabinete em gabinete. Conversas sobre os últimos enforcamentos, resultados desportivos, invasões e por aí fora. Prosseguiu a sua vida e, sempre que podia, concentrava-se na revisão dos manuais de Direito. Então, um dia, a Cinderela viu uns colegas a rir de algo num jornal e, ao passar por eles, inclinou-se para ver. Era a coluna «Encontros Breves». «Conhecemo-nos no baile», dizia. «Dançámos, fugiste. Casamos?» Ela fugiu. Depois, num fim de semana alguns meses mais tarde, quando a Cinderela estava a começar a embrutecer com a rotina da vida do escritório e tinha várias máquinas de roupa para lavar, regressou ao palácio. Habitualmente, a Cindy não passava do fundo das escadas, onde a conversa era animada, as pessoas eram amistosas e não se era obrigado a fazer as refeições com uma madrasta que nos quer matar. Ao subir sorrateiramente pelas escadas de serviço, só para conseguir espreitar o seu antigo quarto, ouviu uma voz familiar. Aquele baixo tranquilizador, aquele tom confiante. Com o som, veio a recordação sensorial de uma certa água-de-colónia. Voltando a descer as escadas e percorrendo o corredor, a Cindy aproximou-se da entrada da sala do café e espreitou lá para dentro. Viu as suas meias-irmãs feias a sorrir e a fazer trejeitos da forma mais presumida possível. Ajoelhado à frente delas, encontrava-se o Príncipe Encantado. As princesas aproximaram-se dele à vez e tentaram fazer deslizar, empurrar e, por fim, forçar o pé a entrar no sapato que ele segurava. O príncipe, de facto, estava a ser encantador ao supor que uma das irmãs poderia ser a mulher com quem tinha dançado.
Quando os esforços se revelaram infrutíferos e havia já sangue visível nos tornozelos maltratados, o príncipe disse: - É extraordinário. Um adivinho disse-me que a rapariga a quem o sapato servia tinha sido criada nesta casa. Vossas Altezas, peço-vos sentidamente perdão por ter perturbado o vosso dia. Tenho de prosseguir a busca noutro local... A Cindy recolheu à segurança dos aposentos dos criados, deixando o príncipe a limpar discretamente, com o lenço, o sangue com que as irmãs tinham manchado o sapato, antes de o colocar de novo no bolso. O motivo de conversa seguinte, no escritório, foi a campanha em linha que estava em curso para encontrar a rapariga misteriosa do Príncipe Encantado.
- O que é uma campanha em linha? - perguntou a Cinderela quando ouviu a novidade. Mas todos sabiam que todos sabiam o que era. Por isso, ninguém respondeu. Mas ela depressa descobriu. Ao que parecia, tinham colocado, em todos os estendais do reino, cartazes com a pegada do sapato usado pela rapariga-mistério, oferecendo uma bela recompensa (beleza em tudo era a imagem de marca do Príncipe E) a quem encontrasse uma pegada que lhe correspondesse. - Talvez não queira ser encontrada - disse ela. A Cindy sentia que, ao longo dos anos, fizera algumas boas observações espirituosas no escritório, embora nunca ninguém tivesse reparado. Mas aquela, dita com toda a seriedade, provocou a hilaridade geral. Era impensável que alguém não se quisesse casar com um membro real e com uma fortuna imensa.
Todos rebolaram a rir. Houve até quem lhe desse um hi-five. Ela empurrou o carrinho para longe dali. Pela milésima vez, a Cinderela debateu-se para fazer passar a instável roda dianteira do carrinho sobre o ressalto na entrada do elevador. Quando a porta se abriu no rés- -do-chão, puxou o carrinho atrás de si e virou-o na direção certa com um esforço suado e várias pragas furiosas. Por fim, estacionou-o no local habitual e voltou-se, exausta.
- Oh, merda - disse ela. - Sim - disse o Príncipe Encantado. - Não devia estar aqui - disse ela. - É zona exclusiva de funcionários. Além disso, e mais importante, é assédio. - Que posso dizer? - respondeu ele. - Não sei como desistir. - Provavelmente, é uma deficiência cerebral - disse ela - provocada pela sua consanguinidade. - Mas depois recordou a si própria: «Não tentes desmoralizá-lo. Não vai funcionar. É o Príncipe Encantado.» Ele sorriu-lhe. - Como é que me descobriu? - Acontece que é tão ridiculamente diligente, que limpa as teias de aranha do teto do escritório, princesa. - Não me chame isso - disse ela. - Não gosto mesmo nada. E então? - Estava em cima da fotocopiadora, a limpar o teto, e, quando se inclinou, deve ter premido a tecla de impressão com o dedo do pé, pois deixou uma fotocópia da sua pegada na máquina. - Então alguém a encontrou, comparou com a pegada que circula por aí e disse-lhe? Ele sorriu. - Qual era a recompensa por me denunciarem? - perguntou. - Aposto que eram milhares. Devia ter sido eu a pedi-la, para depois a dar a instituições de beneficência. - Este sapato serve-lhe? - perguntou ele, pondo um joelho no chão e estendendo o sapato. - Claro que serve. É meu. - Não o experimenta? - Não. Ele sorriu de novo. - Importa-se de ir embora, agora?
Ele ergueu um sobrolho. - Não vem comigo? - Não! Tenho trabalho à minha espera. Obrigada. - Se vier comigo - respondeu -, nunca mais terá de trabalhar. - Para começar, eu nunca teria trabalhado - disse ela olhando para as suas mãos cobertas de pó e limpando-as ao fundo das costas - se não tivesse querido. Sabe isso. Portanto, desista lá dessa ideia de estar a salvar uma donzela, okay? É antiquada e desprezível. Ele ficou abatido. Mais do que isso - pareceu genuinamente afetado. Mesmo sabendo que aquilo se devia ao facto de ele ser mimado, ela sentiu-se culpada. - Olhe - disse -, ter sido mandada para aqui foi uma oportunidade incrível. Sempre detestei fazer parte da realeza. Não me ser permitido ajudar os pobres e os famintos ou sequer falar com eles. Porque não era o que se fazia. Quando a minha madrasta me pôs neste lugar, vi que era uma tábua de salvação, uma experiência de vida extremamente útil que uma princesa normal não costuma ter. Aceitei de bom grado. - Ótimo - disse o Príncipe Encantado, recuperando a forma. - Mas eu diria que, depois de todo este tempo, já viveu a sua experiência, certo? E pode assumir o lugar a que tem direito como princesa... e futura rainha... mais bem preparada para governar do que qualquer das suas predecessoras.
- Ei, lamento - disse a Cinderela. Até lhe deu uma palmadinha no joelho. - Sei que nunca ninguém lhe disse isto. Não estou interessada. Sei que achou empolgante procurar a sua imaginada mulher mágica com uma grande campanha. Fê-lo sentir-se o herói de uma história. E todos os que conhece também estão empenhados nela, pois, consigo, tudo funciona sempre e, portanto, acha que isto acabará em casamento e filhos. Mas não é isso que vai acontecer. O príncipe tinha adotado uma expressão paciente e pensativa, arvorando ainda um ar algo divertido. Ergueu as mãos. - Lamento ter exagerado. - A campanha nacional foi exagerada, é verdade - disse a Cinderela. - Mas, a sério, o que se passa é que eu, simplesmente não, estou interessada. Não interessa a forma como me pede. Desta vez, ela assistiu à consciencialização dele com uma ligeira satisfação. - Tenho dezoito anos - disse ela. - Quem é que se casa aos dezoito anos? Estou a tirar um curso de Direito para poder ajudar as pessoas dos bairros de lata que não têm direitos. Depois de concluir os estudos, vou viajar. Viver verdadeiras experiências. E tratar de mim, como as pessoas reais fazem. Era óbvio que nunca ocorrera ao Príncipe Encantado que uma pessoa (e ainda menos uma mulher bonita e privilegiada) pudesse querer estas coisas quando tinha à sua disposição uma alternativa fácil. - Depois de viajar, vou dedicar-me à minha carreira. Encontrar um emprego no ramo de atividade que escolher.
E, admitamos, pinar um pouco por aí. Mais tarde, talvez assente numa relação sólida. Se encontrar alguém. O Príncipe Encantado pareceu estar a fazer uns cálculos rápidos. - Se eu esperar todo esse tempo... - disse com uma seriedade estrangulada. - Não seja estúpido, Príncipe - disse ela. - Afinal, como é que se chama? Não posso chamar-lhe sempre Príncipe. - Hector Bartolomeo Randolph Charmant-Schleswig- -Branden-Försstenweis von Engelscharpff. - Okay, okay. Bom. Chamar-lhe-ei Príncipe. - Ainda não tinha acabado... - Diz-me o resto noutra altura - interrompeu ela. - Quem quer pertencer à família real, afinal de contas? O escrutínio, os problemas psicológicos, o isolamento, a responsabilidade, a pressão. O príncipe começou a ficar com o aspeto de quem estava a acordar de um sonho alarmante. Olhou de relance para as suas mangas de brocado e para as medalhas herdadas que trazia ao peito. - Porque tenho isto? - perguntou. - Deviam ser usadas por um soldado na reserva. A Cinderela ficou satisfeita por assistir ao despertar dele. Mas tinha mesmo umas faturas para verificar, por isso, pôs o lápis na boca e folheou os papéis que tinha na prancha. - Eu devia estar a usar as calças rasgadas de um operário! - exclamou o príncipe. - Hum-hum. Chamam-se jeans. - E a ir a festivais de música! E a fumar charutos de jazz! Caramba, nem acredito que vivi assim tanto tempo. É tão falso. - Bem podes dizê-lo, meu - murmurou a Cinderela, fazendo uma soma de cabeça. - De agora em diante, quero viver uma vida real, dando às pessoas em vez de as explorar! Vou revogar o meu estatuto real e tornar-me médico. Vou trabalhar nas zonas de guerra mais perigosas do mundo! Levar alívio aos oprimidos! - É esse o espírito. - Ela virou uma página e entalou o lápis atrás da orelha. - Quero começar já! - gritou ele com alegria. - Bem, se quiseres começar a compreender os trabalhadores, há ali umas caixas para levar ao quinto andar - disse a Cinderela. E foi assim que o Príncipe Encantado desistiu dos seus títulos e terras e dedicou a vida a causas nobres. A Cindy e ele tornaram-se amigos e colegas, e pouco depois também colegas de estudo. Embebedaram-se e emocionaram-se algumas vezes juntos, deitando-se lado a lado completamente vestidos, fingindo estar a dormir. Depois, pouco a pouco, à medida que o tempo foi passando e as suas vidas se tornaram mais ocupadas, perderam o contacto e esqueceram-se um do outro. Depois morreram.
É a vida, né?
Bruno Vincent
Editora Nuvem de Tinta