Um casaco de pele de crocodilo, dentes estragados de um sinistro criminoso e a peruca loira de uma espécie de mulher fatal. Foi há trinta anos e Um Coração Selvagem, mais conhecido pelo seu título original, Wild at Heart, de David Lynch, era o filme do verão de 1990 nos EUA, depois de em Cannes ter conquistado a Palma de Ouro. Para além das bizarrias acima mencionadas, a lista de insanidades lynchianas é quase infinita. Objeto de culto instantâneo, estas aventuras de Sailor e Lula punham David Lynch num pique de adoração, em especial junto de uma nova geração de cinéfilos que morreu de amores com uma fábula rock n' roll capaz de evocar os mitos de O Feiticeiro de Oz..O filme foi também o passaporte para o estrelato dos seus atores. Nicolas Cage reforçava o estado de graça depois de papéis em obras fundamentais do final dos anos 80 como Peggy Sue Casou-se, do tio Francis Ford Coppola, Birdy - Asas de Liberdade, de Alan Parker, e O Feitiço da Lua, de Norman Jewison. Aqui transportava o seu próprio carisma à Elvis e sublinhava a vocação para personagens extremas..Quanto à recém-oscarizada Laura Dern, tem aqui um dos seus grandes papéis, uma musa de uma sensualidade intrinsecamente americana. Dern beneficiou muito do sucesso do filme e logo a seguir era nomeada ao Óscar em Rosa - Uma Mulher de Fogo e punha-se às ordens de Spielberg em Parque Jurássico. Mas Wild at Heart vivia também muito dos secundários. É memorável o Bobby Peru de Willem Dafoe, um tipo sinuoso com gargalhada surreal, mas ainda a Dianne Ladd vilanesca e perturbadora, uma sogra dos diabos. Depois, quem não ficou tocado com os olhos de mágoa de Perdita Durango, a imensa Isabella Rossellini, na altura casada com Lynch?.Obra-prima suprema de Lynch, Wild at Heart é uma adaptação do romance de Barry Gifford em que se conta a fuga de dois jovens amantes no interior da América. Sailor e Lula estão apaixonados, excitados e querem sentir a vibração da estrada, mas atrás deles está uma série de figuras do mal com uma missão: assassinar Sailor, desejo da mãe de Lula, uma figuração da castração conservadora americana. Aí, sim, sentimos a referência à bruxa de Oz e o génio de Lynch na planificação da fábula, neste caso, uma fábula com uma vertigem de violência e um humor apoiado na exploração do bizarro mais obscuro..Wild at Heart é tão estranho e sensorial que não corre riscos de ficar datado. Terá influenciado uma estética de cinema de choque? Pelo menos, devolveu ao cinema americano a felicidade dos prazeres do road movie. Misturou humor nonsense com noções inovadoras do thriller clássico. Muitos lançaram foguetes com este neo-noir, mas o que é notável é a forma como todas as obsessões de Lynch por um folclore negro americano estão intocáveis..Aclamado pela crítica dos anos de 1990, Wild at Heart impunha um imaginário de um erotismo acelerado. Lynch criava movimentos de câmara e ângulos que se tornariam imagens de marca. Naquele automóvel descapotável, Sailor e Lula, amantes em fuga, ficavam mitificados e símbolos de um grito de liberdade, tanto mais porque eram embalados à pala de canções de Chris Isaak, Powermad e o próprio Nick Cage a cantar Love Me Tender de Elvis....Curiosamente, sete anos depois, Perdita Durango, a personagem de Isabella Rossellini, ganhava um filme em nome próprio, neste caso realizado pelo madrileno Alex de La Iglesia. Ali já não morava Lynch e a violência explícita era um outro espetáculo de burlesco. Felizmente, Rosie Perez, a nova Perdita, tinha uma negritude divertida....Outro primo afastado de Um Coração Selvagem talvez seja Assassinos Natos/Natural Born Killers (1994), de Oliver Stone, a partir de um guião de Quentin Tarantino. Mas Mickey e Mallory não tinham Oz no horizonte e eram um Bonny & Clyde com problemas psiquiátricos. Seja como for, também viajavam e torneavam a estrada perigosa da América....Mas Wild at Heart pode e deve ser sempre visto como uma "blague" de David Lynch. Uma piada que é logo enunciada quando Cage explica porque usa aquele espampanante casado de pele de crocodilo: "Símbolo da individualidade e minha crença na liberdade pessoal." Filme mais livre não há.