Uma janela de liberdade. 16 presos sobem ao palco em Leiria
Quando a partir das 16.00 deste sábado se abrir o pano do Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria, o palco será uma janela de liberdade. É assim que o sentem os 16 reclusos do Estabelecimento Prisional de Leiria, jovens com idades entre os 16 e os 23 que participam neste projeto artístico da SAMP (Sociedade Artística e Musical dos Pousos), financiado pelo programa PARTIS, da Fundação Gulbenkian, e outras entidades. "Este espetáculo vai ser uma festa. É tempo de comemorar o que fizemos. É como abrirmos uma janela a todos estes rapazes".
A história da ópera na prisão começa a ser contada em 2014 e tem agora o seu último ato. Chama-se agora "Só Zerlina ou Così fan Tutte?", e inspirou-se "na transformação dos participantes e sobretudo de nós, profissionais envolvidos no primeiro projeto Partis - "Don Giovanni 1003 Leporello 2015", que decorreu entre 2014 e 2016", como recorda ao DN David Ramy, o professor da SAMP que coordenou esta última parte do projeto. "Eu acredito que nós, profissionais, acabámos por aprender muito mais do que aquilo que conseguimos ensinar. Porque o ser humano é uma caixinha dentro de outra, e de outra e de outra...como as matrioskas".
Desta vez "só vamos contar (e cantar) excertos da ópera, além de 18 minutos do espetáculo de dança que foi criado por eles (os reclusos). Chama-se "de dentro para fora" e é tudo à volta de um círculo de cadeiras, e da importância que uma cadeira tem numa prisão, num refeitório, ou numa casa", conta o coordenador. Depois vem o teatro, que ocupa igualmente 18 minutos, numa peça a partir dos Lusíadas e que se chama "estamos todos no mesmo barco", inspirada na figura dos marinheiros. O espetáculo integra ainda um mini documentário sobre a semana em que a Orquestra da Gulbenkian esteve em Leiria para ensaiar com os reclusos, naquela que foi a primeira vez que o conjunto de músicos entrou numa prisão.
"Como o primeiro amor é sempre o mais bonito, eu pensava que este programa ia ser mais do mesmo, que nunca seria tão emocionante, como da primeira vez", adianta David Ramy. Mas afinal o projeto teve muitas variantes. "Acabámos por trabalhar com 40 reclusos e 60 familiares. Ou seja, 60% do tempo foi investido na relação direta com as famílias: bater porta a porta, conversar, tocar e cantar em cada uma das casas (a maioria na zona de Amadora-Sintra). Conhecer estas famílias e as realidades de cada uma delas".
Era importante perceber "o que é que acontece quando estas pessoas saem de precária, quando os familiares vêm da visita, o que é que esperam dessas pessoas que estão presas? Porque se não for a própria família, como é que se pode ajudar a moldar estas pessoas para que a reintegração seja positiva?". Esse foi o primeiro impacto para a equipa, a que se seguiria um outro, não menor: as residências artísticas; de teatro, dança e audiovisual. "Aí nós deixávamos de lado o nosso ponto de vista e abríamos a outros olhares. Só fazíamos a ponte entre estas entidades artísticas e a prisão. Na verdade deixámos de ser a fonte e passámos a ser a ponte", acrescenta David Ramy.
Neste espetáculo de encerramento o elenco é ainda mais diverso: além dos reclusos, há 50 familiares em palco (mães, namoradas, ex-namoradas). No total, estarão em palco à volta de 100 pessoas, entre reclusos, familiares, funcionários e os artistas que se juntam: a escola de dança Clara Leão, o grupo de teatro Leirena, o coletivo Casota, e ainda quatro cantores líricos profissionais. Dois deles "têm uma história de vida muito interessante - uma era professora de ensino especial, e outro era enfermeiro pediátrico. Têm uma outra noção da vida e das pessoas, o que foi determinante para este projeto", afirma David Ramy.
"É uma amálgama espetacular", conclui o coordenador do projeto. Alguns fizeram as duas óperas e as três residências artísticas. Outros saíram entretanto em liberdade, mas voltaram para cantar algumas áreas e fazer parte do espetáculo.
A diretora do EPL, Joana Patuleia, colaborou ativamente em todo o projeto. O grupo fez dois ensaios por semana, mais um terceiro, com os funcionários da cadeia, que também participam no espetáculo. Na primeira ópera participava o diretor (entretanto substituído), desta vez o papel da direção foi outro: "fazer a ligação com todos é muito importante, e a drª Joana fez isso muito bem", sublinha David.
David Ramy começou pelo teatro, em Cuba, de onde veio há 10 anos, mas trazia na bagagem a dança e toda a arte. Começou por dar aulas num colégio católico da cidade de Leiria. "Tinha uma vida muito tranquila, mas não era tão divertida como esta", diz ao DN, no intervalo entre os últimos ensaios para o espetáculo de encerramento.
Está na SAMP desde 2011, e no projeto da Ópera na Prisão desde o início, em 2014. "Fazia toda a parte da música que não era lírica, trabalhava toda a parte dos rap"s e funanás que se iam misturando com as óperas", bem como todo o movimento cénico.
O mastro Paulo Lameiro - que iniciou o projeto mas que entretanto está a coordenar a candidatura de Leiria a capital europeia da cultura em 2027 - acabou por passar a coordenação a David Ramy. O universo da prisão já não lhe era de todo estranho. "Em Cuba, 80% da minha família é constituída por presos políticos. Por isso eu sabia já o que é essa realidade de uma mãe que espera que o filho saia da cadeia. Ou pior, sei o que é uma mãe despedir-se de um filho que nunca mais voltou a ver". Mas David sabe também que ainda há finais felizes. Se dúvidas houvesse, conta a história da avó, "que deixou de ver o meu pai em 1961 e voltou a vê-lo em 2005, quando eu consegui reuni-los em Madrid".
David acredita que toda esta experiência lhe deixou "muitas ferramentas para trabalhar com as crianças, ou para o projeto que muito me apaixona, com doentes terminais, em que estamos com eles nas últimas 72 horas de vida, sejam eles bebés ou tenham 102 anos".
Afinal, Davi Ramy retira destes últimos anos uma conclusão pouco consensual: "de todas as pessoas com quem eu trabalho, estas da prisão são as mais livres. Muito mais preso está um idoso deitado numa cama, muito mais recluso é um bebé dentro de uma incubadora, muito mais presa está uma comunidade cigana fechada por paredes e por outra comunidade".
O projeto Ópera na Prisão/Pavilhão Mozart: Só Zerlina ou Così fan Tutte? começou em 2016, no seguimento do primeiro projeto Partis "Don Giovanni 1003 Leporello 2015". É um programa artístico SAMP realizado com mais de uma centena de jovens da Prisão Escola de Leiria, financiado pelo Programa PARTIS da Fundação Calouste Gulbenkian, Portugal Inovação Social, Fundação Caixa Agrícola de Leiria, tendo como parceiros locais o Estabelecimento Prisional de Leiria - Jovens, a Câmara Municipal de Leiria, a Escola de Dança Clara Leão, o Leirena Teatro e a Casota Collective.
Ao longo de mais de dois anos foi montada a produção de uma ópera, realizando vários concertos dentro e fora do estabelecimento prisional, e envolvidos múltiplos parceiros.
O projeto SAMP, intitulado Pavilhão Mozart, nasce no âmbito do programa Ópera na Prisão com o objetivo maior de dar continuidade à criação e produção artística com os jovens reclusos do Estabelecimento Prisional de Leiria. "Neste espaço, foram trabalhadas, em colaboração com outros parceiros locais e nacionais, as artes performativas, a cultura e a educação, contribuindo para uma reintegração mais humanitária da vida na sociedade".
Os bilhetes custam três euros e podem ser adquiridos no site do Teatro José Lúcio da Silva. Paralelamente, decorre uma exposição de fotografias alusivas ao projeto, da autoria de Joaquim Dâmaso, o repórter fotográfico que acompanha a Ópera na Prisão desde o início. A mostra estará patente até 17 de dezembro e pode ser vista nas traseiras da Estação Rodoviária, junto ao Teatro. Afinal, aquele é um ponto fulcral na vida dos reclusos e dos seus familiares. É ali que chegam a Leiria e é dali que partem.