Uma espécie de monsieur Bovary por Michel Houellebecq…
A maior parte dos romances, até de escritores bons, falham no fim que lhe dão. O grand finale, seja por estarem cansados ou fartos do livro - ou por incapacidade - , é inferior ao que conseguiram escrever até ao fecho e frustram constantemente os leitores. Em Aniquilação, Michel Houellebecq faz exatamente o contrário, poder-se-ia mesmo dizer que o romance vale pelas trinta e três páginas que o encerram. Longe de ser "a obra-prima do autor e o grande acontecimento do ano", como alguém escreveu no La Libre Bélgique, cuja citação abre os elogios da badana direita, este romance não será nada disso, no entanto o leitor não sairá frustrado. Pelo contrário, esse grand finale vale por tudo o que não foi escrito antes.
Houellebecq constrói uma narrativa que torna impossível saber a que se destina durante a maior parte da leitura, mas avança-se curioso tendo em conta os romances que já entregou ao público, com destaque para O Mapa e o Território, A Possibilidade de uma Ilha, e uma boa parte de As Partículas Elementares. Em Aniquilação regressa-se à invenção do que será a vida política francesa daqui a uns anos, mais precisamente em 2027, tal como já o fizera em Submissão. Desta vez a pressão dos atores sociais muçulmanos não é grande, focando-se antes em dois representantes da classe política francesa até há bem pouco típica: dois membros brancos. Claro que a extrema-direita não é esquecida, mas Marine Le Pen é um fogacho de pouca intensidade nas eleições que dominam uma boa parte do livro.
A figura principal é Paul, que se metamorfoseia sob o protagonismo de Bruno, um ministro da Economia perspicaz e eficiente, que tenta fazer a França regressar aos gloriosos Trinta Anos, e consegue através de almoços de cortesia acalmar o sindicalismo de protesto, entre outras práticas empresariais que "apenas" esquecem os desempregados, designadamente uma imensa geração de pessoas que deixam de ter lugar no mercado de trabalho devido à idade. Não são os trabalhadores menos qualificados os retratados nesta Aniquilação, antes a burguesia francesa - jovens e idosos - que têm perdido influência nas decisões do espectro partidário. O retrato político não esquece Macron e a sua mania de ser rei, gastando-se algumas folhas a mostrar que a população precisa de um monarca/presidente que inspire confiança através de uma intervenção quase divina em vez de preocupação social.
O caminho que o romance faz é em direção a umas eleições presidenciais, seguidas de umas legislativas, que os leitores estarão por certo recordados tendo em conta o que se passou na realidade há poucas semanas. É, aliás, perturbador encontrar tantas semelhanças entre a ficção e a realidade, o que mostra que Houellebecq nem precisa de se esforçar muito para inventar uma narrativa já que o que vê à sua volta é suficiente. E, como se esse esforço desnecessário fosse verdade, a história vai-se movendo sem grandes intrigas ou inventividade que não seja aquela mais conhecida dos atos eleitorais: a capacidade dos assessores de campanha em guiar o processo até à vitória final, bem como a ganância do poder por parte dos mais altos magistrados da nação francesa. Há um piscar de olhos a outros presidentes, como os já "esquecidos" pela sociedade atual, como é o caso do longínquo presidente Mitterrand, D"Estaing ou Chirac.
Para apimentar o argumento, Houellebecq socorre-se de ameaça do terrorismo. Uma intervenção invisível e incompreensível por parte dos seus autores, que utilizam a Internet para se revelarem e executarem os seus planos de desestabilização. Uma ação que dá início ao livro, vai pontuando em várias partes e que no fim é usada em grande estilo, mesmo que o leitor se sinta um pouco frustrado com os efeitos devastadores do terrorismo virtual que lhe é oferecido. Houellebecq precisava de um fantasma que mostrasse como o mundo tem um novo deus a coordená-lo que não o da violência do islão - já gastou essa munição nos livros anteriores - e os dois homens em que sustenta todo o romance são-lhe suficientes para o que pretende mostrar sobre uma sociedade que perdeu o motor da História e apenas se vai governando. No entanto, com o grand finale que criou esquece de valorizar a ameaça devidamente. Há ainda uma tentativa de substituir a já gasta sequência de Fibonacci, de tanto usada em séries e filmes, por uma teoria de números primos para os acontecimentos históricos.
O drama que leva o leitor ainda perdido em (já) quinhentas páginas de histórias de família desagregadas e complexas nos seus problemas de relações e de empregabilidade, que estava a gostar da ameaça terrorista, frustra-se com a inexistência da concretização desse terrorismo - não que inexista, mas sem a explosão necessária além de um massacre desumano de que já se cansou de ver nos noticiários ineficazes das televisões europeias. Queria que fosse mais palpável, como é a vida do assessor do ministro. Houellebecq frustra também os leitores que vão à espera de muitas descrições eróticas, pois as poucas mulheres que coloca no livro são desinteressadas nos seus parceiros. É preciso varar centenas de páginas para satisfazer a imensa legião de voyeurs que a literatura houellebecquiana criou, mesmo que em situações de dor pouco compatíveis com o sexo é que essas cenas surjam. Aqui foge dos desvios morais a que se dedicou intensamente no romance Serotonina, tão desviantes como é a sua cabeça.
Quem leu O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco vê esta leitura como fácil, pois o escritor italiano ocupou centenas de páginas com uma diversão que acaba em nada, só que Michel Houellebecq utilizou um dos melhores truques da sua inventividade, o referido grand finale, e o leitor fica tão devastado que perdoa qualquer extensão desnecessária deste romance. Talvez a intenção do escritor fosse criar um monsieur Bovary contemporâneo através do protagonista, no entanto confronta-se com a desimportância da vida moderna - mesmo que Aniquilação inclua todo o cardápio do romance de Flaubert, o adultério, as críticas ao clero e à burguesia, retratos da infância e da velhice, paixões e abandono. Os cenários emocionais de Aniquilação até poderiam pretender imitar os de séculos passados, mas como Houellebecq faz questão de exibir, a França não é mais a mesma e está formatada de forma desinteressante. Para adensar o mistério, introduz frequentemente os sonhos do protagonista, sem indicar o que são, como se fizessem parte natural da narrativa.
Tal como José Saramago fazia cada vez que lançava um novo livro, também Houellebecq repete: uma chuva de escândalos que promovem a obra parida. Mas Saramago tinha um propósito que o autor francês não alcança a não ser com a 'ajuda' do atentado ao Charlie Hebdo. Daí que se tenha antecipado que este possa ser o seu último romance ou quase evitado as entrevistas polémicas, remetendo-se a um silêncio em relação à nova obra. Mais uma vez ignorou o calendário da rentrée literária francesa e o benefício comercial das vendas de Natal, lançando Aniquilação nos primeiros dias do ano. É já seu costume afirmar-se deste modo, como que a dizer "comecem o ano com o meu livro e esqueçam o que leram no ano passado". Contudo, o escritor não resistiu a fazer algum merchandising, como de conceder a leitura a vários críticos de uma edição antecipada para que num dia determinado, 30 de dezembro de 2021, todos publicassem a opinião favorável quanto possível nos seus jornais e revistas.
A exclusividade dessa concessão obrigou a algum recato por parte dos sortudos, como se pode ver num texto da jornalista de Cultura, Laurece Houot, da France Télévisions: "Aniquilação é o oitavo romance de Michel Houellebecq, muito aguardado de um dos autores franceses mais traduzidos." O que se pode esperar? Pergunta e responde: "o tema principal é o amor mas também a morte"; acrescenta: "fala também de legumes verdes, do desemprego e de outras coisas também", "é uma alternativa ao mundo", "beneficia-se de um lançamento muito bem orquestrado"...
No entanto, o editor do Le Monde Livres, Jean Birnbaum, teve direito a uma conversa com a "celebridade mundial da literatura contemporânea francesa" e do encontro resultaram duas publicações. A primeira com o título "Michel Houellebecq: "É com bons sentimentos que se faz boa literatura"". Introduz a entrevista assim: "Sobre a colcha enrugada da cama estão um maço de cigarros, um isqueiro, um cinzeiro cheio de beatas, um controle remoto de televisão, uns óculos, um par de pijamas, e também Houellebecq que veste uma roupa que já viu melhores dias." Diz a Birnbaum, "sem grande articulação de palavras", o seguinte: "Eu assim deitado e você sentado parece que estou a fazer psicanálise". O editor concorda e continua: "Página após página, somos empurrados para aventuras como se fossem um sonho do protagonista. Sonhos que já estavam em romances anteriores, mas desta vez sistematiza-os. "Eu não estou interessado em Freud, tenho muitas queixas de mim, mas estou interessado nos sonhos e por isso coloco-os no livro. Eu escrevo após acordar e ainda guardo alguma parte dos sonhos. Escrevo-os antes de tomar banho, porque depois desaparecem´. Depois da sessão no quarto do hotel, vamos para o restaurante - cinco horas de conversa. Vejo as fotografias, uma com as paisagens da região do Beaujolais, quando Houellebecq pega num saca-rolhas e diz "Na minha opinião, o vinho branco é o melhor. Eu sou um pouco alcoólico". Parece um bebé a brincar".
A segunda publicação tem um título mais apropriado ao conteúdo do romance: "Eu não penso na morte". A entrevista segue no mesmo tom, nunca com o formato tradicional de pergunta e resposta, mas de uma conversa: "Michel Houellebecq estremece como um adolescente exausto, estende as pernas sobre a cama, faz silêncios, até me avisar com a sua voz febril: "Sim, há a morte. Thomas Bernard escreveu sobre ela. Pascal disse-o de forma mais brilhante. Quando se pensa na morte, tudo o resto é menor. Pode parecer estúpido exprimir-me assim"."
Aniquilação
Michel Houellebecq
Editora Alfaguara
640 páginas
OUTRAS NOVIDADES:
Entre 1993 e 2022, o escritor Francisco Duarte Mangas publicou vários livros de ficção, bem como de poesia e literatura para os mais jovens, mas neste início de ano coincide num regresso às livrarias o relançamento do seu primeiro livro, Diário de Link, e o mais recente, O Alfarrabista de Ponta Delgada. A distância entre os livros oferece ao leitor a possibilidade de confrontar os tempos de escrita do autor, bem como do que entretanto se alterou no seu projeto literário. De imediato se percebe a riqueza do vocabulário em ambos, fórmula que os seus contemporâneos tão pouco buscam e que Duarte Mangas não descuida. Também se nota uma "paginação" diferente, sendo o primeiro desenvolvido em apenas dois capítulos e sem parágrafos a interromper a leitura desse diário apócrifo, uma narração que obriga em muito ao domínio do relato para suster a respiração ao leitor. O segundo, é o oposto, breves capítulos que entrelaçam os episódios de uma história que interessa logo desde o seu início, ao lerem-se os truques dos profissionais de venda de livros em segunda ou mais mãos.
Coincidentemente, também, ambos são viagens ao passado. Link é o personagem que altera a paisagem da aldeia que ainda será mais radicalmente mudada ao ser submergida pelas águas de uma barragem. Trata-se de Vilarinho das Furnas, uma aldeia comunitária do Gerês, em que é oferecido o registo histórico de uma época que terminou e que só é de vez em quando visível devido a secas extremas, mas o que resta das antigas habitações dificilmente fará repercutir os que por lá se viveu. O romance refaz esses tempos, em que, por exemplo, a igreja ibérica "salva" os dois países da península, os padres confrontam-se com comunistas, as gentes com radicais no que respeita à Guerra civil de Espanha. O que, diz-se numas linhas do livro, desembocará em situações extremas: "A primavera estende-se, corre sobre as águas, sussurra entre os ramos das árvores, qualquer dia os vilarinhos batem com a língua nos dentes".
Se as águas silenciam muito do que acontece em O Diário de Link, serão outras as águas que cercam a ação de o Alfarrabista, uma narrativa a duas vozes e cujo cenário se situa nos Açores. De um lado está a protagonista que procura entre os livros antigos um exemplar do diário da outra figura com que divide a história, o jardineiro George Brown. Tal como Laura receia abrir o volume quando lhe chegou às mãos, também o leitor avança com cuidado para não se desiludir com o perfume de um argumento sedutor. Como se diz numa frase, um "jardim botânico é mais do que um conjunto de árvores exóticas, é uma obra de arte". É dessa vegetação literária que o romance está repleto, bem como de outros conhecimentos, como o de educar o vento do Pico. Tal como o jardineiro é aconselhado a não desistir de utopias, o Alfarrabista faz acreditar que ainda existem livros que são verdadeiras belezas.
Diário de Link
Francisco Duarte Mangas
Editora Teodolito
89 páginas
O Alfarrabista de Ponta Delgada
Francisco Duarte Mangas
Editora Caminho das Palavras
148 páginas