São trinta anos de Alemanha reunificada (comemorados a 3 de Outubro passado), trinta e um anos de Alemanha sem muro (físico) de Berlim (comemorados a 9 de Novembro). São, portanto, trinta e trinta e um anos de superação da Alemanha com medo sobre o medo..Tratando-se o medo ["die Angst"] de um sentimento estrutural alemão, existe, todavia, na prática dois medos: um medo interno que parte da Alemanha para o mundo e um medo externo que parte do mundo em relação à Alemanha..Concentrando-nos na Alemanha reunificada, ainda que esta história dos medos tenha história e seja anterior à queda do muro de Berlim e à reunificação, o medo externo que existe da Alemanha deve-se ao poder económico e também militar que este Estado, localizado no centro do espaço europeu, tem sido capaz de adquirir (e readquirir quando tudo parece perdido) ao longo do tempo por vários momentos..Neste sentido, e a propósito deste medo externo relativamente à Alemanha, aquando da queda do muro, Margaret Thatcher terá então avisado o Presidente Bush (pai), segundo John Lewis Gaddis (2007), de que se não tivessem cuidado os alemães conseguiriam com a paz o que Hitler não tinha conseguido com a guerra. "Vencemos os alemães duas vezes e agora eles estão de volta", terá dito Thatcher..Este é o medo de que a Alemanha militarista que almejava no passado conquistar mais poder e espaço pela via da guerra regresse. Contudo, a Alemanha não é mais o Estado militarista que foi e ainda que procure prosseguir os seus interesses, conquistar e adquirir mais poder nas relações internacionais, ambiciona fazê-lo pela via da paz, servindo-se, para tal, das empresas alemãs e das organizações internacionais (com destaque para a União Europeia) que integra..Então e que medo interno é o da Alemanha? De facto, o medo que a Alemanha tem, correspondendo a um aspeto decisivo da sua cultura pós Segunda Guerra Mundial, alterna entre o passado acontecido (relacionando-se, neste caso, com o Nacional-Socialismo, o Holocausto, a Guerra Total e derrota, de igual modo, total que lhe sucedeu) e o futuro (novo e desconhecido) que está para acontecer. Na visão de Frank Biess, autor de "Republik der Angst" ["A República do Medo"](2019), no qual aborda a história alemã como uma história composta de ciclos de medo, o medo alemão tem a ver com a perceção que a Alemanha tem de si própria ["Selbstwahrnehmung"] e, nesta perspetiva, é igualmente um mecanismo de defesa..O passado da Segunda Guerra Mundial e de tudo o que com ela está relacionado permanece (ainda) como um fantasma, envolto em vergonha ["die Scham"] e culpa ["die Schuld"]. Note-se, porém, que este sentimento de culpa parece ser mais evidente nos filhos de quem viveu o período do Nacional-Socialismo e menos persistente nas gerações mais jovens (netos e bisnetos e por aí adiante), com maior distância temporal em relação ao período em causa e desenvolvidas com a mente mais aberta e consciente para o que está fora da Alemanha e para o que é global. O que não significa esquecimento ou desconhecimento do passado, relembrado sob as mais diversas formas..Por conseguinte, esse medo interno alemão tem, diríamos que, muito a ver com o seu difícil passado: com o sofrimento que causou e com o sofrimento pelo qual, de igual modo, passou..Daí que, e recuperando a ideia de mecanismo de defesa, a Alemanha reunificada se tenha tornado no Estado mais internacional da história alemã, rodeada de Estados aliados e com os quais mantém relações amigáveis desde há vários anos. Daí que a Alemanha se empenhe de forma ativa na defesa do multilateralismo (como tem sido demonstrado pelo modo como tem conduzido a presidência que mantém até dezembro do Conselho da União Europeia e a presidência que teve em julho passado do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas) e na conservação do seu papel de poder civil, componentes essenciais identitárias da sua política externa..Os tempos são outros. A Alemanha reunificada não é a Alemanha Nacional-Socialista. O medo é inimigo da liberdade e a Alemanha reunificada resultou de um triunfo sobre o medo, sendo a comemoração do 9 de Novembro uma comemoração da liberdade para a Alemanha e, consequentemente, para a Europa. Também a Europa se reunificou depois da queda do muro de Berlim e de reunificada a Alemanha..E, por isso mesmo, neste momento, por altura da celebração dos trinta e um anos da queda do muro de Berlim e de superação da Alemanha com medo sobre o medo, encontram-se espalhados restos desse mesmo muro na Europa (nas cidades de Bruxelas, Estrasburgo, Tallinn e Reykjavik), na América (em Nova Iorque) e na Ásia (em Seul), apresentando-se estes hoje como um símbolo da liberdade (e de esperança) e uma.advertência para a importância da mesma, sobretudo nestes tempos de cinzenta incerteza (e, por inevitabilidade, medo) originados pela pandemia....Doutora em Estudos Estratégicos pela Universidade de Lisboa.Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa