"Que leve muitas saudades quem esta casa deixar", podia ler-se, pintado sobre pequenos azulejos embutidos numa das paredes do antigo restaurante, quase que a adivinhar o destino desta viagem..Para quem hoje passa o portão número 64 da Avenida de Berna, em Lisboa, torna-se difícil imaginar o que aqui se ergueu há quase 70 anos, sob a alçada de um casal de refugiados da segunda Guerra Mundial. Uma casa branca de arquitetura antiga, trepada por folhas verdes que se estendiam sobre as nossas cabeças desde o portão principal até à entrada, janelas de bordas amarelas gastas pelo tempo, telha laranja a cobrir o teto e o característico arco de boas vindas com a inscrição "La Gôndola". Mas o que era verde virou ramos desfeitos e as paredes que então suportavam o primeiro restaurante italiano de Lisboa são hoje ruínas por detrás das altas chapas de alumínio. A demolição iniciou-se este mês..Já todos esperavam que este dia chegasse. Assim como Mário Moreiro, 51 anos e dono de uma pequena mercearia paralela ao restaurante, que continua "sem saber por que razão a demolição está a acontecer", mas não é desfecho que o surpreenda. "Toda a gente por aqui falava disto."."Desde que cá cheguei em 1992 que se sabia que aquilo ia acabar por fechar." Quem também o lembra é António Lourenço, 49 anos, um dos responsáveis pelo café Erges, a poucos metros do antigo La Gôndola. Na verdade, a discussão é ainda mais antiga. A decisão de demolir o edifício estava na mesa desde a década de 80, mas o acordo concretizado entre a Câmara Municipal e o Montepio - agora detentor do terreno - só aconteceria em julho de 2015. O estabelecimento que estava arrendado pela autarquia desde 1951 foi alvo de uma permuta que permitiu à câmara vender o terreno à associação mutualista, em regime de copropriedade.."A Rita é que gostava de lá ir", uma cliente assídua do café Erges aproveita para dizer, atenta à conversa que acontecia com António Lourenço. "Muita gente, aliás." Foi, desde há muito tempo, um espaço procurado por "gerações" de famílias na capital..O DN tentou contactar os proprietários do agora extinto La Gôndola, mas sem sucesso. Sabe, contudo, que deram a volta ao destino que lhes foi anunciado e são agora responsáveis por um novo restaurante em São Bento. Entretanto, o futuro do terreno vendido será como "edifício para serviços" do Montepio, de acordo com o que o gabinete de comunicação da instituição avançou ao jornal Público..Mário Moreiro puxa pela memória e recorda como tantos que ali entravam na sua mercearia lhe diziam como estavam "revoltados com o fecho"..O desagrado dos antigos clientes da cozinha do La Gôndola tinha sido, entretanto, transmitido através de uma petição online contra a demolição da casa. Mais de 2 mil assinaturas pediam a inclusão do espaço no programa municipal Lojas com História, para aquele que é um espaço de importante "memória urbana". Alertavam ainda para "a perda de identidade de Lisboa" com o fecho do restaurante desenhado em 1928 pelo engenheiro Júlio Salustiano..La Gôndola conheceu a luz do dia poucos meses depois de Enrico Mandillo e Maddalena Ranedda fugirem juntos de Itália e se instalarem em Lisboa, no fim da Segunda Guerra Mundial. Ele um poeta, jornalista, oficial da Marinha e adepto do fascismo italiano. Ela, quem dominava o requinte de uma cozinha italiana e, mais tarde, portuguesa. Enrico e Maddalena não viveram o suficiente para ver hoje as cinzas do que foi, em tempos, o primeiro restaurante italiano de Lisboa.