"Todos os dias recebo telefonemas de outros hospitais a pedir vagas em cuidados intensivos"
Nesta segunda-feira, a ministra da Saúde, Marta Temido, realizou uma conferência de imprensa para fazer o ponto da situação da evolução da pandemia de covid-19 em Portugal e dar conta da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) à mesma.
Com uma taxa de incidência a sete dias de 187,4 por 100 mil habitantes, um índice de transmissibilidade (RT) de 1,21, uma taxa acumulada de 23 óbitos por milhão de habitantes nos últimos 14 dias e um aumento de novos casos diários em todas as faixas etárias, com maior expressão nos grupos dos 20 aos 39 anos e acima dos 85, dados que partilhou na conferência de imprensa, a ministra considera que existem razões para preocupação, nomeadamente quanto ao provável aumento de hospitalizações e mesmo óbitos nas próximas semanas, "dada a fragilidade deste grupo etário [mais de 85 anos]". A tendência já tem vindo a verificar-se nos últimos dias.
As previsões para os próximos dias também não são animadoras. De acordo com Marta Temido, as estimativas do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge indicam que hoje, 28 de outubro, seja atingido um novo máximo de internamentos em cuidados intensivos (UCI), que foi de 271 em abril, e que, no dia 4 de novembro, a próxima quarta-feira, estejam hospitalizadas 2634 pessoas em enfermaria e 444 em UCI, ou seja, mais 1140 e mais 191, respetivamente, no período de uma semana.
"É o que dizem os modelos matemáticos, se as medidas introduzidas não se revelarem efetivas", esclareceu a responsável da Saúde, acrescentando que "os portugueses usam hoje formas de proteção que não usavam no início da pandemia e o Serviço Nacional de Saúde [SNS] está mais bem preparado em meios técnicos, recursos humanos e conhecimentos".
No entanto, advertiu, "o que fizermos hoje terá impacto nos contágios que acontecerem amanhã e os contágios que acontecerem amanhã terão impacto nas hospitalizações na semana a seguir e, eventualmente, nos internamentos em unidades de cuidados intensivos e nos óbitos".
DestaquedestaqueA capacidade de resposta máxima a picos de afluência é, segundo a ministra da Saúde, de 17 225 camas em enfermaria e 852 em cuidados intensivos.
"Não há tempo a perder e é necessário que cada um faça o que está ao seu alcance para parar a propagação da infeção", disse, antes de passar à exposição da capacidade máxima do SNS para responder ao crescente número de casos e ao aumento da pressão que estes significam sobre os hospitais das diferentes administrações regionais de saúde (ARS), sobretudo as do norte e de Lisboa e vale do Tejo, onde se verifica o maior crescimento de casos.
Se atualmente o número de camas disponíveis para doentes covid-19 é de 2120 (1802 em enfermaria e 318 em unidades de cuidados intensivos), a capacidade de resposta máxima a picos de afluência é, garante a ministra da Saúde, de 17 225 camas em enfermaria e 852 em cuidados intensivos, distribuídas pelas cinco ARS, realçando que, apesar da "gestão em rede, dinâmica e flexível, de acordo com as necessidades", esta é mesmo a "capacidade máxima, numa situação extrema", porque "o SNS tem limites".
Tem limites e na opinião de João João Mendes estão prestes a ser atingidos. O médico intensivista do Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), que desde março integra a equipa da unidade de cuidados intensivos para doentes covid-19, avisa que "se o número de casos continuar a crescer como até aqui, vamos chegar a um ponto de rutura. Há capacidade no SNS para receber mais doentes, mas não pode aumentar muito, porque não bastam as camas, o espaço físico e os ventiladores, são precisos recursos humanos - médicos e sobretudo enfermeiros - que escasseiam", diz.
Segundo o especialista, a mortalidade em cuidados intensivos durante a primeira vaga foi muito baixa, em Portugal - "cerca de 20%, muito menor do que noutros países europeus" - porque conseguiu evitar-se a pressão sobre o SNS. "Apesar de, na altura, ainda se conhecer mal a doença, houve tempo e meios para tratar os doentes com qualidade".
"Neste momento, sabemos mais sobre a doença e temos mais terapêuticas disponíveis, que permitem alterar o curso da doença, mas, se não conseguirmos cumprir rácios de médicos e enfermeiros para o número de doentes, não conseguiremos garantir a mesma qualidade de cuidados. A taxa de mortalidade vai depender da pressão sobre o SNS", diz João João Mendes, que defende uma gestão centralizada das vagas em UCI e o trabalho em rede.
"Todos os dias recebo telefonemas de outros hospitais a pedir vagas em UCI e isto não devia acontecer assim, os hospitais não deviam estar a ligar uns para os outros a saber se há camas. Tem de haver controlo e uma gestão centralizada que permita saber onde há vagas, para encaminhar os doentes", diz, adiantando que a pressão já se faz sentir.
Destaquedestaque"No Amadora-Sintra, nunca estivemos parados em termos de atividade covid em medicina intensiva, mas uma boa gestão da UCI com os outros serviços tem permitido que as coisas funcionem".
Mais médicos e enfermeiros nos cuidados intensivos do SNS foi outra das garantias de Marta Temido, que explicou que as 852 camas disponíveis nestas unidades contavam com os recursos humanos para assegurar o seu funcionamento.
Apesar disso, João João Mendes teme, como aliás a ministra, a rutura se os números não baixarem.
"No Amadora-Sintra, nunca estivemos parados em termos de atividade covid em medicina intensiva, mas uma boa gestão da unidade com os outros serviços do hospital tem permitido que as coisas funcionem e temos disponibilizado uma ou duas vagas todos os dias, mas já estamos sob pressão. Temos dez camas, ainda não entrámos em rutura, mas em uma ou duas semanas podemos entrar."
Além do envolvimento do setor privado na solução, seja através de negociação de protocolos, seja através de requisição civil, e de uma maior clareza e coerência na tomada de medidas restritivas para conter a transmissão do vírus por parte do governo, o médico intensivista apela às pessoas para que não desvalorizem a gravidade da doença.
"Não se pense que a covid-19 grave só afeta os mais velhos. Temos doentes críticos internados em todas as franjas etárias, dos 30 aos 80 e muitos anos".