Teresa Freire. "Tem de haver uma reflexão sobre o que é preciso recuperar. Não é só aprendizagens, mas as próprias crianças"
Psicóloga, professora e investigadora da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, Teresa Freire está envolvida em vários projetos relacionados com o estudo do impacto da pandemia nos mais jovens.
Lidera um projeto de investigação mundial, Leisure and Well-Being Across Countries in the era of Coronavirus-19: Trends and Applications, com o apoio da World Leisure Organization (WLO). Integra o Co-Action Against COVID-19, um projeto de rastreio, avaliação e intervenção nos problemas de saúde mental de crianças em contexto de pandemia, na cidade de Guimarães, inserido no ProChild CoLAB, um laboratório colaborativo que pretende desenvolver uma estratégia nacional no combate à pobreza e à exclusão social na infância. Coordena a Academia Gulbenkian do Conhecimento, Projeto Ser+, onde elaborou três programas de intervenção em grupo para a promoção do desenvolvimento positivo e de competências socioemocionais de jovens entre os 12 e os 25 anos. Acumula ainda a coordenação da Consulta de Psicologia de Adolescentes no âmbito da Associação de Psicologia (APsi) da Universidade do Minho, e a vivência com jovens em contexto universitário, quer como professora quer como coordenadora científica do Projeto Tutorias por Pares e Mentorias da Universidade do Minho.
A confirmação do regresso às aulas presenciais foi a melhor notícia para as crianças, apesar desta onda de aumento de casos?
Acho que sim. Estamos num momento em que a avaliação em relação ao regresso à escola tem outras condições. A menor severidade da doença, e o facto de termos uma população vacinada, acabam por criar aqui outras condições para um regresso mais seguro e mais natural, permitindo, e essa é a grande boa notícia, às crianças e jovens voltarem a um contexto que é fundamental para o seu desenvolvimento. Estes grupos precisam de interação nos chamados contextos de vida. E, portanto, a interação com as pessoas associadas a esses contextos, que são diferentes do núcleo familiar, com as atividades próprias de cada contexto específico de vida, o relacionamento entre pares, tudo isso são ingredientes fundamentais para que o desenvolvimento se possa processar de uma forma saudável.
As novas regras de avaliação de contactos de risco, que evitarão que uma turma inteira tenha de ser enviada para casa a cada caso positivo na sala, vêm trazer a tão esperada normalização da vida escolar?
Sim. Qualquer situação que leve as crianças a terem de interromper um contexto escolar é um fator muito disruptivo e penalizador em termos de desenvolvimento e daquilo que a criança precisa para se organizar como pessoa, como indivíduo e como indivíduo social, que está inserido num determinado contexto.
Quais as principais marcas da pandemia que têm detetado nos alunos? Que alterações é possível verificar no comportamento de crianças/adolescentes com os períodos de isolamento ou ensino à distância?
As principais desordens têm estado à volta das questões de ansiedade e stress associados a estes momentos de voltar ou de não ir para a escola. Toda esta comunicação que a criança vai tendo sobre aquilo que se passa no seu meio envolvente acaba por criar níveis de ansiedade bastantes elevados, porque a criança percebe que há coisas que estão a acontecer e que nem toda a gente controla, que podem por em causa a sua vida e a tranquilidade da sua vida. Nos mais velhos, à medida que vamos avançando nas idades, as mesmas questões colocam-se, embora em relação a aspetos diferentes. Enquanto a criança mais nova, nos períodos em casa, acaba por se sentir num contexto mais seguro, está mais perto dos pais, das figuras e do ambiente que lhe dão segurança e proteção, nos mais crescidos a ansiedade sente-se de maneira diferente. Nessas idades, o isolamento em casa não é visto tanto como um fator de segurança, mas sim como retirada de espaços de crescimento que nesta fase se dão fora de casa e fora do núcleo familiar.
Estão numa fase em que a socialização é mais importante...
Muito mais importante. Por isso, aqui, a retirada dos contextos onde as atividades são realizadas, onde existem as interações com os outros, acaba por ser muito mais penalizador nestas faixas adolescentes, porque se retira aquilo que é o pano de fundo do seu verdadeiro crescimento e do treino das suas competências para crescer.
Há a perceção do quão se agravaram esses problemas ao longo dos últimos dois anos? Tem havidos mais jovens e pais a recorrer aos serviços de apoio psicológico?
Sim, nos mais pequenos são quase sempre os pais a sinalizarem aquilo que se passa com as suas crianças, e há mais pais a pedir auxílio. Já nos mais jovens, são eles já capazes de se sinalizarem, de dizer "eu preciso de ajuda", "eu preciso de alguém que me ajude a superar aquilo por que estou a passar". E tivemos muito mais jovens, olhando por exemplo para os nossos serviços na APSI da Universidade do Minho, a pedirem ajuda no último ano do que em algum outro ano anterior. Precisamente por questões de uma grande ansiedade associada à imprevisibilidade não só em relação ao que está a acontecer, mas sobretudo à imprevisibilidade futura em relação ao que será a trajetória de vida que terão pela frente. Se isto, num processo normativo, já é em si uma preocupação natural desta faixa etária, muito mais se agrava se também o contexto é em si um fator de imprevisibilidade. Embora cada idade tenha as suas características e o impacto deva ser avaliado de acordo com essas características de cada grupo etário, esta pandemia penalizou muito mais os jovens e adolescentes do que as crianças mais pequenas.
A saúde mental é o principal cuidado a ter com crianças e jovens nos próximos tempos?
Eu diria que tem de ser a prioridade já. Não pode ser algo que vamos esperar para ver, que está em agenda à espera do que vai acontecer, das repercussões que vão surgir. E há muitas consequências que nós não sabemos ainda quais serão, porque obviamente a nossa geração também nunca tinha passado por uma situação destas para avaliar bem as consequências. A pandemia alertou-nos para a importância disto, mas entre os profissionais no âmbito da saúde mental essa preocupação já existe há muito tempo. A saúde mental não pode estar aqui apenas numa agenda remediativa, mas sobretudo numa agenda preventiva, associada à capacitação dos indivíduos. Há competências e capacidades que podem ser desenvolvidas para apetrechar as pessoas com recursos para saberem lidar com as várias situações. E isso faz parte da saúde mental.
E a escola atual está preparadas para essa dimensão da formação, para preparar crianças e jovens também para essas competências emocionais?
Até há bem pouco tempo, a Escola, de forma geral -porque há sempre exceções - não investia nessa educação não formal de competências, do crescimento pessoal e socioemocional dos indivíduos. E esse tem de ser um investimento premente. É algo que tem de ser atualizado, para trabalhamos essas dimensões que hoje se sabe que serão fundamentais para o futuro, para sermos trabalhadores adequados àquilo que vão ser as mudanças sociais, para sermos pessoas capazes de relacionamentos interpessoais relevantes, porque sabemos que a dimensão interpessoal é muito importante na nossa organização individual. E isto é possível trabalhar desde o pré-escolar até à universidade.
Uma das consequências da pandemia foi o aumento do uso das tecnologias. Isso acentuou também o risco das adições, dos jogos às redes sociais. Como lidar com isso?
Até à pandemia, havia um conjunto de guidelines sobre como usar de forma adequada essa "maquinaria", olhando para as questões da saúde física e mental. De repente, as crianças e os jovens começaram a ter as instruções ao contrário. "Olha, vai para o computador que é aí que tens aulas", "fala com os teus amigos no telemóvel", etc... Isso não nos ensinou propriamente nada que já não soubéssemos, mas pôs em prática um conjunto de aspetos importantes. O problema aqui não são as tecnologias e o uso das tecnologias. Hoje é impossível andarmos para trás, acharmos que vamos voltar a estar sem telemóveis ou sem computadores. É completamente irrealista. Por isso, a aposta tem de ser num uso adequado. Ainda bem que numa pandemia nós tínhamos telemóveis e computadores. Se não tivéssemos essa tecnologia, como é que teríamos vivido esta pandemia? O essencial é nós percebermos que temos de introduzir esta literacia digital. E essa é uma das competências que está hoje listada como uma das competências essenciais na formação dos jovens.
Mas detetaram esse aumento das adições dos jovens em relação tecnologias? Sinalizaram casos desses?
Sim. Nos mais velhos, sim. Aliás, até já antes da pandemia a adição aos computadores era já muito visível, tanto que começou a fazer parte da classificação das doenças mentais e é hoje um aspeto extremamente relevante.
Voltando ao regresso às aulas. Também pode ser um desafio adicional para alguns deles, neste contexto, depois de longos períodos em isolamento? E como lidar com isso?
Sim, é verdade. A maioria das crianças e dos jovens quer ir para a escola porque é lá que encontra muitas das situações que são para si atrativas, que dão prazer, satisfação. Mas, independentemente da pandemia, há crianças para quem estas situações são mais perturbadas, desorganizadas. Há crianças que choram sempre que vão para a escola, há jovens que têm dificuldades sociais e ir para a escola acaba por ser um esforço grande... temos essas diferenças individuais. Nestes cenários, a ansiedade pode ser aumentada e o regresso às aulas pode ser mais desafiador. Isto é outra dimensão da saúde mental que deve ser acautelada. Por isso é que estas questões são muito maiores do que a mera resolução pontual quando os problemas acontecem.
Falamos muito de aspetos comportamentais, emocionais e sociais, mas também há um impacto ao nível das próprias aprendizagens dos conteúdos curriculares?
Sim. Acho que se nota. Embora o nosso foco, na psicologia, não seja tanto sobre as aprendizagens, mas sim sobre os fatores de ansiedade, de bem-estar ou mal-estar, percebemos que estes fatores dificultam as próprias aprendizagens. Agora, do ponto de vista clínico, desenvolvimental, tem que haver também outra postura em relação à aprendizagem. E se calhar, se a aprendizagem não se pode realizar num contexto específico de sala de aula, se não se pode realizar sobre um conteúdo curricular específico, podemos trabalhar a criança e a aprendizagem a outro nível, com outras atividades. E as atividades lúdicas são por si um fator de aprendizagem muito grande. Cada vez mais tem que se utilizar estratégias diversificadas que fomentem a aprendizagem dos conteúdos curriculares.
Apesar do regresso às aulas presenciais, continuamos com modelos de organização escolar moldados pela pandemia, como intervalos mais curtos, muitas vezes suprimidos até entre aulas, a utilização de máscaras nos espaços escolares, mesmo ao ar livre. É tempo de reconsiderar estes condicionamentos também?
Sim. Eu acho que a postura não pode é ser "vamos esperar para isto passar". Porque isso é que pode ser um custo sem fim. Nós não sabemos se voltaremos algum dia às mesmas circunstâncias anteriores. Por isso, acho que não podemos adiar soluções à espera de um dia voltar ao que já foi. Se as condições são diferentes, temos de ser criativos para proporcionar a mesma normalidade e bem-estar às crianças na vivência escolar.
Foi ativado um plano de recuperação de aprendizagens. É suficiente? Ou tem uma dimensão redutora em relação às reais necessidades das crianças neste contexto?
Um plano de recuperação meramente curricular é redutor. E não estamos a olhar àquilo que foram as transformações das crianças, qualquer que seja a faixa etária. As crianças transformaram-se porque vivenciaram situações diferentes, que nunca tinham vivenciado e das quais nunca tinham ouvido falar ainda. As crianças não são as mesmas. Tem de haver uma outra postura e uma outra reflexão em relação àquilo que realmente importa recuperar. Não é só curricularmente. É recuperar crianças, a sua trajetória de crescimento, aquilo que são as condições para elas poderem crescer em todas as dimensões em que estão a crescer.
Também a nível familiar os períodos de isolamento e maior convivência doméstica criaram desafios. As relações entre pais e filhos foram em muitos casos afetadas ou alteradas?
As relações familiares também não foram poupadas a estas transformações e foi muito difícil a pais com filhos em idade escolar gerir tudo aquilo que foi continuar a fazer as tarefas de trabalho e de família num contexto em que todos estão presentes sem diferenciação de momentos, com os diferentes contextos todos misturados. Também muitas famílias sofreram aqui alterações, umas para melhor outras para pior. Se em algumas famílias serviu para se conhecerem melhor, houve situações em que isto foi aumentar o conflito e a rotura de algumas relações. Recuperar as relações familiares é extremamente importante e nalguns casos será necessária uma ajuda. E o Estado aqui pode ter um contributo, proporcionando muito mais profissionais e muito mais oportunidades de as pessoas serem ajudadas. As escolas, por exemplo, deviam ter mais psicólogos disponíveis.
Está a decorrer o processo de vacinação para as crianças dos 5 aos 11. A vacina é um fator de confiança acrescido para os mais novos no regresso ao contexto escolar?
É um fator importante. E isto tem vários patamares de aspetos que vão todos desembocar numa maior serenidade e num maior bem-estar quando as crianças voltam à escola. Nenhuma criança gosta de estar doente, sente-se mal. E quando se sente mal, sente-se insegura. E quando se sente insegura, o mundo dela abana todo. Portanto, é, efetivamente, securizante para a criança saber que tomou uma vacina e que a vacina é boa para a sua saúde e para a saúde de todos. Este enquadramento de bem-estar individual e de bem-estar social é muito importante para a criança. A criança irá mais segura para a escola, irá mais liberta. E isto é muito importante para o desenvolvimento da criança.