"Temos esperança que a glicoimunologia possa contribuir para neutralizar o novo coronavírus"
A investigadora Paula Videira, líder do Grupo de GlicoImunologia da UCIBIO na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, está coordenar o projeto Glycovid-19, que irá testar compostos baseados em glicanos e plasma convalescente quanto ao seu potencial de neutralizar a entrada do SARS-CoV-2 durante a infeção.
"Os testes levarão menos de três meses para serem implementados, e os compostos efetivos poderão ser sugeridos para ensaios clínicos pelo Serviço Nacional de Saúde", diz a investigadora, explicando que "os glicanos são os principais mediadores de infeções por coronavírus, influenciando a sua entrada nas células".
Além da UCIBIO da FCT NOVA, estão envolvidas no projeto as empresas CellmAbs, Pharma73, VectorB2B, o Instituto Ricardo Jorge, o IP do Porto, Hospital de São João e o Centro Hospitalar Universitário do Porto.
O seu laboratório dedica-se à investigação em glicoimunologia. Pode explicar em que consiste esta área de investigação?
A glicoimunologia é uma combinação entre a glicobiologia e a imunologia e visa estudar os aspetos imunes afetados pelos glicanos e perceber como estes influenciam a resposta imune. Os glicanos são um conjunto de açúcares que decoram todas as nossas células e proteínas, de um modo geral. São hidratos de carbono, portanto são altamente complexos, que têm um papel que pode afetar a função de determinadas moléculas, atribuindo-lhes novas funções. Costumo dar o exemplo de uma árvore, que, tendo folhas ou flores, é sempre uma árvore. As folhas e as flores seriam os tais glicanos e a árvore podia ser uma proteína. Ora, a função da árvore é diferente de acordo com a decoração que tem. É esse o papel dos glicanos: diversificar toda uma série de funções nas nossas moléculas e células. Nós pretendemos perceber, do ponto de vista da resposta imunitária, como é que esses açúcares são importantes.
E como é que são importantes?
Posso dar alguns exemplos do que tem sido estudado. Os vírus que possuem um envelope, como é o caso do SARS-CoV-2, quando infetam a célula, ao saírem, levam moléculas da célula que infetaram atrás deles e nomeadamente esses glicanos. Estes podem servir para se esconderem e não serem detetados pela resposta imunitária. O sistema imunitário precisa de perceber o que é estranho e o que é que não é estranho, o que deve atacar e o que é que não deve atacar e os açúcares podem ajudar o vírus a não ser detetado pelo sistema imunitário.
Os glicanos disfarçam o vírus?
Sim. Esse é um aspeto da glicobiologia, a evasão à resposta imune. Outro aspeto é a modulação, ou seja, a alteração da resposta imunitária: pode aumentá-la ou diminui-la. Nós queremos perceber como é que estes glicanos operam. Outro exemplo que estamos a estudar é a resposta imunitária em indivíduos que nascem com defeitos da glicosilação - que provocam doenças muito raras, multiórgão porque a glicosilação é extremamente importante para vários sistemas. O que se verifica é que uma boa percentagem destes doentes têm alterações na resposta imune, são mais propícios a infeções, têm problemas no desenvolvimento de células imunitárias ou dificuldade de manter um bom nível de anticorpos. Isto dá-nos uma ideia da importância dos glicanos na resposta imune.
E como é que esses glicanos podem então ajudar a combater a covid-19? Encontrar uma terapêutica eficaz para o SARS-COV-2 é o desafio que todos os cientistas querem vencer neste momento. Qual é a hipótese estudada pelo projeto que lidera, o glycovid-19?
Nós começámos agora a debruçar-nos sobre este novo coronavírus, como a maior parte dos cientistas. Mas o que é que estávamos a fazer que nos levou a pôr os glicanos como hipótese para combater o SARS-CoV-2? Um dos focos do nosso estudo tem sido como é que as células tumorais usam os glicanos para escapar à resposta imune e há vários anos que estamos a estudar o papel de determinados glicanos, que são incompletos - em vez de serem ramificados como uma árvore toda bonita, são mais curtos - e a vantagem para essas células de ter esses glicanos, nomeadamente do ponto de vista imune. Verificámos que eles servem para escapar às respostas imunitárias, em termos de células dendríticas e células T, uma vez que reduzem a atividades destas, o que é uma vantagem para as células tumorais. Ao mesmo tempo desenvolvemos estratégias que pudessem ativar o sistema imunitário, com base nesses glicanos. Com o conhecimento atual que já existe sobre o SARS-CoV-2, demo-nos conta de que foi verificada a presença desses mesmos glicanos que poderia sugerir o mesmo mecanismo de escape do sistema imunitário.
A hipótese é testar compostos baseados em glicanos e plasma convalescente quanto ao seu potencial para neutralizar a entrada de SARS-CoV-2 durante a infeção. Como é que isto funciona?
O passo seguinte foi tentar perceber como, com o conhecimento que temos, conseguimos desenvolver estratégias terapêuticas. A questão dos anticorpos é uma dessas estratégias. Com base nestes glicanos, a hipótese é se podemos impedir (combinando-os com anticorpos de plasma convalescente) de entrar e infetar a célula. Com os nossos parceiros, elaborámos estratégias próximas de serem testadas e então surgiu o projeto Glycovid-19.
Há várias experiências a serem feitas com plasma convalescente, mas ainda não há resultados concretos, pois não?
Estamos a fazer um levantamento e a olhar atentamente para o que está a ser feito lá fora em termos de utilização do plasma de doentes convalescentes. Em Portugal, já estão a começar os ensaios clínicos, mas ainda há questões que se colocam: qual a quantidade de anticorpos que os indivíduos convalescentes expressam? E são de facto são neutralizantes? Uma coisa é ter anticorpos, outra é que esses anticorpos impeçam o vírus de entrar na célula. E poderão de facto impedir a progressão da infeção? Há ainda muitas questões por responder e não temos muitas evidências ainda sobre o plasma convalescente do SARS-CoV-2. Há estudos que apontam para que, de acordo com o momento em que é administrado, pode neutralizar ou pode agudizar a inflamação. Isso tem que ser muito bem estudado.
Mas como é que o plasma convalescente entra na sua hipótese de terapêutica?
Estamos a estudar e a acompanhar a sua utilização e agora, com os nossos parceiros, vamos avaliar a presença de anticorpos contra glicanos nos doentes convalescentes, que vai ser muito útil para percebermos a importância da glicobiologia no SARS-CoV-2. Noutros coronavírus e mesmo no VIH, que também faz parte destes vírus envelope que arrancam parte dos glicanos da célula hospedeira, já há evidência de que anticorpos contra glicanos são neutralizantes e estamos com esperança que a glicobiologia possa contribuir para desenvolver uma terapia eficaz.
Quais são as dificuldades e quanto tempo estima até ter resultados?
Agora precisamos de perceber se estes glicanos não sofrem alterações. O vírus também tem o seu ritmo de mutações, que hoje temos ferramentas para perceber, mas que pode afetar o tipo de resposta. Precisamos de perceber a que é que esse ritmo leva em termos de alterações dos glicanos e isso leva tempo. O que sabemos neste momento e foi muito útil foi, assim que se conseguiu isolar o vírus, conhecer-se as características da sua constituição principal, que foram rapidamente disponibilizadas aos cientistas. Isso alavancou muito o diagnóstico e a possibilidade de investigar, nomeadamente na área da glicobiologia.
O projeto Glycovid-19 é uma espécie de vacina ou é uma terapêutica?
É uma estratégia de neutralização terapêutica. Este conhecimento, se provarmos que os glicanos têm um papel importante, vai ajudar muito no conceito de vacina, porque alerta para a importância dos glicanos na construção da vacina. Mas não será uma vacina, será uma estratégia de impedir a entrada do vírus. Acaba por ser complementar a uma vacina porque esta habitualmente é administrada em indivíduos saudáveis. No caso de estratégias neutralizantes, sejam elas de anticorpos ou açúcares ou plasma convalescente, são para indivíduos que já estão infetados, muitas vezes numa fase avançada da doença, para quem a vacina já não seria eficaz. Há também uma pequena percentagem da população que não desenvolve imunidade e não é recomendada para vacinação porque é imunodeficiente, para quem estas são estratégias mais rápidas de atribuir imunidade. É uma imunidade passiva, mas que tem um efeito mais rápido e é complementar à vacinação.
Quanto tempo estima para o acesso a uma vacina?
Penso que nunca menos de dois anos, mas obviamente que quanto mais cedo melhor. Apesar de haver muita pressão para a criação uma vacina e existir a possibilidade de saltar de algumas etapas para acelerar o processo, há pontos que são cruciais e que não se podem atalhar, que têm que ver com a segurança e a eficácia, e depois a fabricação em larga escala, daí que os dois anos sejam o período mais credível. Um aspeto positivo que tem acontecido no meio desta tragédia é a partilha de informação entre centros de investigação, entre empresas farmacêuticas, entre hospitais, no sentido de desenvolver terapêuticas e vacinação, e isso pode ajudar a acelerar.
E o projeto Glycovid-19 quanto tempo demorará a ter resultados?
O projeto que propusemos foi de três meses só para fazer uma prova de conceito da estratégia de neutralização. Neste momento já temos alguns dados preliminares. Depois, desenvolver uma terapêutica implica outro tipo de testes, com modelos animais in vivo. Se tudo correr bem e se comprovarem as nossas hipóteses, passamos a essa fase e depois testes em humanos, que são os ensaios clínicos. Estamos a falar de um horizonte temporal de um ano pelo menos.
E os resultados preliminares são animadores?
Sim. Podemos dizer com certeza que os glicanos têm um papel na infeção, mas precisamos de mais testes para tornar os nossos dados robustos
Este artigo faz parte de uma série dedicada aos investigadores portugueses e apoiada por: AbbVie