Sobrelotados e sem condições. Bairros sociais podem propiciar o contágio da covid
As cadeiras de plástico à porta do prédio da Rua 25 de Abril do Vale de Chicharros, mais conhecida como Bairro da Jamaica, na freguesia da Amora (Seixal), não escondem a intenção. A vida de quem aqui vive não é só passada por dentro do esqueleto do prédio com os tijolos à mostra. Também se vive na rua, juntos. E o que é pior em plena pandemia de covid-19: isolamento num apartamento, onde faltam condições de habitabilidade e onde vivem famílias numerosas, ou ar livre partilhado com os vizinhos?
"O bairro da Jamaica é uma habitação muito precária e perigosa. Nós temos acompanhado várias comunidades e sabemos que esta população corre um risco superior aos demais por causa das condições em que vivem", diz Rita Silva, dirigente da associação Habita.
Neste bairro vivem cerca de 150 famílias que continuam à espera de realojamento (processo que deverá durar até 2022). Entretanto, 16 pessoas estão infetadas com o novo coronavírus, anunciou a diretora-geral da Saúde, durante o ponto da situação diário sobre a covid-19 no país, esta terça-feira. É um dos "três pequenos focos comunitários", todos localizados na zona de Almada-Seixal , apresentados por Graça Freitas, como uma das justificações dos resultados epidemiológicos da região de Lisboa e Vale do Tejo.
Nas últimas 24 horas, a Direção-Geral da Saúde (DGS) notificou um aumento de 219 casos de covid-19 no país. 209 destes com residência na região da Grande Lisboa. Ou seja, só dez pertencem a outras zonas de Portugal. A região tem agora no total 9778 casos e 325 óbitos. "A situação é complexa, está sob observação, mas também está sob medidas de controlo muito apertadas", garantiu ainda a responsável pela DGS.
A aceleração do contágio na Grande Lisboa abrange "bairros sociais", no plural, embora Graça Freitas apenas tenha confirmado o nome de um: o Bairro da Jamaica. Também o delegado de saúde da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo admitiu, em entrevista ao DN, que os bairros sociais e de lata de Lisboa e arredores começam a ser fontes de transmissão preocupantes. "Nós começámos com pessoas com nomes compridos, que vinham dos Alpes Franceses e do Carnaval de Veneza e agora está a chegar aos nomes curtos. [A covid-19] está a levar o caminho que todas as doenças levam: ir para cima dos pobres", refere Mário Durval.
Na zona da Grande Lisboa há mais de dez bairros de lata. Enquanto se repete o pedido de reforço das medidas de higiene em tempo de pandemia, como a lavagem das mãos ou a desinfeção de superfícies, há quem viva sem água e sem luz. Quem chame casa a uma colagem de contraplacado e cartão. A pobreza "é o principal fator de risco para todas as doenças, incluindo esta", aponta o delegado de saúde regional.
E uma vez dentro do bairro, a propagação da doença entre os outros habitantes fica facilitada, devido à proximidade entre as pessoas. "Quando uma pessoa apanha é muito difícil não contagiar o resto da família, porque estas pessoas que vivem em minorias étnicas vivem quase sempre com a família alargada: avós, pais, filhos, netos. E isto até coloca mais em perigo os mais velhos [as principais vítimas da covid-19]", diz a dirigente da Habita.
"Antes da crise da pandemia já havia uma crise de habitação. A pandemia veio colocar de forma mais flagrante, em todos os setores da sociedade, as desigualdades pré-existentes", acrescenta Rita Silva, que pede ao Governo que tome medidas específica de proteção a esta população.
Quanto ao trabalho das autoridades de saúde, o delegado regional não hesita: é igual para todos. "Encontramos um caso, fazemos um cerco à volta. Tanto faz esse caso ser nas Avenidas Novas como na Almirante Reis", explica.
O DN contactou as duas autarquias (Seixal e Almada) que pertencem ao agrupamento de centros de saúde mencionado pela diretora-geral da Saúde como a localização dos três novos focos. A Câmara Municipal do Seixal lamenta que, apesar de ter pedido à Unidade de Saúde Pública de Almada e Seixal informação sobre a origem dos novos casos, esta ainda não tenha sido entregue "às instituições que estão na linha da frente e que depois seja conhecida através da comunicação social".
Assim, a autarquia refere, em comunicado, que "solicitou com urgência uma reunião à ministra da Saúde e à Unidade de Saúde Pública" para abordar este assunto, garantindo que está a tomar todas as medidas necessárias para proteger a população. E que, no caso do Bairro da Jamaica, foram distribuídas máscaras a todos os habitantes e feitas ações de sensibilização, em conjunto com a PSP, para pedir aos moradores que respeitem o distanciamento social.
A câmara refere ainda que dos 18 concelhos da Área Metropolitana de Lisboa, "o Seixal é o 13º em número de infetados, com 322 casos confirmados (19,30 por 10.000 habitantes)", menos de metade do que o concelho de Lisboa. "O mesmo ocorre na Península de Setúbal, onde nos concelhos do Barreiro e Almada existem 207 e 352 casos confirmados e onde o número contaminados por 10.000 habitantes é superior, 27,45 e 20,83, respetivamente", apontam.
Já a Câmara Municipal de Almada afirma que "nenhum dos três focos comunitários descritos pela DGS" se situa neste concelho, uma vez que não há "nenhum surto preocupante" apesar de "Almada integrar o Agrupamento de Centros de Saúde Almada-Seixal".
Mesmo assim, a autarquia diz que está atenta à situação epidemiológica e a adotar medidas concretas nos bairros sociais locais, tais como a distribuição de máscaras reutilizáveis, medicamentos e refeições a pessoas com carências económicas. A câmara acrescenta também que criou um espaço de acolhimento temporário para pernoita e alimentação de pessoas sem abrigo e aprovou um Plano Almada Solidária no valor de 5 milhões de euros para apoiar os mais vulneráveis.