Amor é Simples é a nova peça que Diogo Infante leva ao palco, como protagonista e encenador, no "seu" Teatro da Trindade. Uma comédia escrita (e depois interpretada) em 1939 pelo britânico Noël Coward (1899-1973) sobre um ator que atravessa uma crise de meia-idade, sofre de solidão, busca o amor e procura disfarçar a sua homossexualidade - num tempo em que tal era proibido. O diretor artístico do Trindade, em conversa com o DN, fala sobre a peça e os pontos de ligação com a personagem, mas também sobre a pandemia, que apelida de "guerra", e ainda da eterna esperança que seja o próximo governo a deixar a política de "mercearia" na cultura para criar uma verdadeira estratégia para o setor..Como é que esta peça chegou até si? Andava a namorar o Noël Coward há algum tempo, em particular um texto que o Jorge Silva Melo fez, o Private Lifes (Vidas íntimas, na versão portuguesa dos Artistas Unidos), um dos mais icónicos do autor. E a Sandra Faria, produtora, disse-me que devia ler o Present Laugher (título original da peça O Amor é Simples). Li mas não me entusiasmou muito. Mas quando fui a Londres com o meu filho fui ver a peça que estava em cartaz no Old Vic e gostei imenso. Aquela sensação que tinha sentido na leitura desapareceu quando vi a produção. Embora eles tenham feito opções que não usei na nossa versão, percebi o potencial. E vi os pontos de contacto entre mim e a personagem. Havia ali um lado que me permitiria, tal como o Noël Coward fez (com a sua persona pública e uma imagem que ele próprio teria de si), brincar comigo próprio e isso pareceu-me saudável. Acresce que o meu filho disse-me que devia fazer o papel. Nesse dia liguei logo à Sandra, dei-lhe razão e disse que me apetecia fazer comédia. Adoro fazer comédia mas tenho muito cuidado nas que faço. Não me apetece fazer comédias de escorregar na casca da banana, ou seja de um certo facilitismo. É evidente que a natureza das comédias é leve mas ainda assim é possível falar de temas interessantes..A pandemia atrapalhou a sua estreia, certo? Sim, a peça já devia ter acontecido há mais de um ano. Foi adiada duas vezes por causa da pandemia. Aliás, a covid veio mexer em toda a programação. Quando se desenhou este cenário de datas e percebi que ia colidir com o meu trabalho na televisão (Quero é Viver, telenovela da TVI) fiquei um pouco assustado. Mas não me apeteceu adiar mais a vida em espera do resto da equipa. De alguma maneira isso foi uma coincidência porque o texto original é de 1939 e foi adiado por causa do início da II Guerra Mundial. E nós tivemos que protelar o nosso também por causa de uma guerra que ainda estamos a acabar de travar..E o que foi mais desafiador: encenar ou protagonizar? Depende da natureza do desafio, não me recordo quantas peças encenei até hoje mas já levo mais de uma mão cheia... mas só até há muito pouco tempo me considerei encenador, considerava-me mais um diretor de atores. Sentia que me faltava alguma visão global do todo. Portanto, sempre tive algum pudor em me autodenominar encenador, mas há uns anos a esta parte deixei-me disso. Respondendo à pergunta, normalmente encenar era um desafio maior, porque é uma responsabilidade maior. Portanto, nesta peça foi um complemento, e foi assumido, não me apeteceu ceder esse lugar de comando..Citaçãocitacao"A pandemia também veio revelar a importância dos artistas nas nossas vidas. Nunca se viu tantos filmes, nunca se leu tanto, nunca se ouviu tanta música"..Disse numa entrevista ao DN, em 2018, que fazia muitas personagens que não têm nada que ver consigo. Nesta peça identifica-se, já o disse, com o personagem principal. Porquê? É a história de um ator de teatro muito conhecido que está a atravessar uma crise de meia idade e que se confronta com uma série de expectativas desde o ponto de vista amoroso ao social e profissional e tem de gerir essa energia coletiva das pessoas que andam à volta dele. De alguma forma também vivo isso. Sou ator de teatro e, à nossa escala, sou bastante conhecido, tenho muitas responsabilidades e também eu determino a vida das pessoas que me rodeiam. Posso considerar que tenho algum poder, e esse poder obviamente cria responsabilidade, mas espero não ser tão egocêntrico como o Guilherme de Andrade da nossa versão. Mas sou obviamente alguém que se confronta com a sua imagem, com a expectativa dos outros, com a questão artística que há muito me acompanha em termos de reflexão, sobretudo sobre o que é o teatro comercial e o teatro elitista e intelectual. Mas há outra componente humana que me tocou muito: o Noël Coward era homossexual assumido mas vivia numa época em que isso era um crime. Portanto, toda a gente sabia mas ninguém falava do assunto. E ele através do texto cria uma série de subtilezas e pistas que mostra o seu conflito interior. Está à procura do amor, está à procura de si próprio. Há uma solidão, uma grande nostalgia e um medo profundo de estar sozinho..Acontece muito com atores, que são idolatrados e com expectativas inerentes, esse problema de se sentirem sozinhos no meio da multidão? Acho que sim, depende de onde se vem. Estarmos habituados à ideia que somos reconhecidos permanentemente e depois se isso deixar de acontecer cria um vazio profundo e uma grande nostalgia desse reconhecimento, e que, sobretudo agora, é potenciado pelas redes sociais, pelos seguidores e likes que temos. Todo esse aparato é assustador e viciante. Eu não sou diferente, também tenho seguidores e promovo e uso as plataformas e percebo a tentação. Tento ter algum cuidado. Pessoas com grande exposição como a personagem da peça e eu estão sujeitas a isso mais facilmente, mas depois depende da predisposição de cada um. Felizmente estou rodeado de amigos e família que me mantêm preso à terra. Tive a possibilidade de falar da minha intimidade quando entendi, conduzi esse processo nas alturas que me pareceram mais relevantes para mim e não me deixei afetar pelas circunstâncias ou pelos outros. Mas estamos em 2022. Agora o que sinto é que, curiosamente, peças como O Amor é Tão Simples, ou situações retratadas na peça, ainda têm um impacto muito grande em muita gente que se sente inspirada para atingir um nível de honestidade e de felicidade. Porque os grandes centros urbanos não são o país real e ainda há muita gente que sofre de homofobia e de preconceitos de vária ordem..Às tantas, na peça, a personagem principal é criticada por fazer um teatro demasiado comercial. Isso não se passa consigo, que vai de uma comédia como esta, à TV ou a peças como Ricardo III... Sim... embora eu sinta que seja visto pelo meio artístico como um ator comercial, na medida que faço peças que atraem muito público. Independentemente do texto ser mais ou menos elaborado, a minha ambição é fazer propostas transversais que cheguem ao máximo de pessoas possível, e desse ponto de vista sou um ator comercial porque quero que os meus produtos tenham o máximo de qualidade possível e sejam o mais vendáveis possível. E não tenho qualquer prurido nisso. Claro que isso tem um custo num meio pequeno como o nosso - por exemplo há muito que deixei de fazer cinema, que é muito cruel com atores comerciais..Citaçãocitacao"Sou um ator comercial porque quero que os meus produtos tenham o máximo de qualidade possível e sejam o mais vendáveis possível. E não tenho qualquer prurido nisso. Claro que isso tem um custo num meio pequeno como o nosso, por exemplo há muito que deixei de fazer cinema"..Como foi para si viver a pandemia e os confinamentos? Foi uma montanha russa a vários níveis. O primeiro confinamento foi uma benção. Estava muito cansado porque vinha de um período de trabalho muito intenso. E assim pude fazer uma série de coisas, como ler, comer, conversar, ver coisas, cozinhar, estar com a família e dormir. Do ponto de vista pessoal esse primeiro confinamento foi muito importante, mas é evidente que causou enorme transtorno na estrutura do teatro. Tivemos que reorganizar toda uma programação - apesar de trabalharmos com ano e meio de antecedência -, foi necessário reorganizar a vida de muitas pessoas. Felizmente tivemos sempre o apoio do Inatel que é o proprietário do Teatro da Trindade que nos deu sempre suporte para podermos honrar os nossos compromissos. Mas nem só do nosso umbigo vive a sociedade. Acho que foi um tumulto que serviu para colocar a nu a enorme fragilidade social dos artistas que agora está finalmente a ser abordada com a publicação do novo estatuto do trabalhador. Ainda ninguém sabe a dimensão mas acho que ainda vai ter que ser mexido porque o ónus vai para os empregadores e para os promotores que vão ter que aumentar os orçamentos para suprir os encargos sociais e financeiros de forma a salvaguardar, e bem, os artistas. A pandemia também veio revelar a importância dos artistas nas nossas vidas. Nunca se viu tantos filmes, nuca se leu tanto, nunca se ouviu tanta música. O vazio foi colmatado online por vários artistas. Eu próprio disse coisas, publiquei poemas..O que espera do próximo governo em relação à Cultura? A minha esperança é que o governo possa fazer o reconhecimento do papel que os artistas e a cultura, em geral, devem ter na sociedade portuguesa e que agora, seguramente, não têm. A começar pelo orçamento de estado que se mantém irrisório - 0,25% (e se contarmos com a RTP vai aos 0,4%) é absolutamente nominal, não tem expressão. Sobretudo o que sinto falta, mais do que reivindicar o 1%, é a ausência de um pensamento político cultural a médio e longo prazo. Porque isso passa necessariamente pelas bases, pelas escolas, pela formação das pessoas. Passa por desenvolvermos essa apetência na fruição artística para quando formos adultos faça parte integrante da nossa vida, na mesma forma como se promove o desporto. Portanto, tenho a esperança, não sei se vã, que alguém deste novo governo, que agora tem o poder absoluto, possa ter um pensamento mais ambicioso para a cultura, que não seja a mera gestão de mercearia..Vivemos hoje o advento do streaming que está a levar vários atores e atrizes portugueses a fazerem séries e filmes com exposição internacional. Como olha para isso? Objetivamente, olho com orgulho e entusiasmo. Sabíamos que temos grande talento em Portugal mas não tínhamos as mesmas oportunidades de o mostrar. E isso veio mudar com o digital. Se me perguntar se tenho ambição de fazer uma carreira internacional respondo sinceramente que não. Porque já tenho 54 anos e, além disso, existem uma série de outras coisas que me preenchem. Esta direção artística no Teatro da Trindade, que é a terceira experiência que tenho neste âmbito [direção artística teatro Maria Matos e D.Maria II ], é algo que gosto muito de fazer. A possibilidade de poder escolher textos, interpretá-los, definir estratégias e programações é muito atrativo. Adoro essa responsabilidade. Esta complementaridade que o teatro e televisão me dão deixa-me muito feliz. A ideia de ir largas semanas ou meses para o estrangeiro não me atrai. Já o fiz, há uns anos, não com este impacto mediático de hoje. No início da pandemia tive o convite para uma série, mas não tinha datas. Fiz essa opção e estou muito feliz com ela. Acho que o meu caminho me trouxe até aqui. Se teria feito algo diferente, acho que sim, mas tudo foi aprendizagem..Recentemente um estudo revelou que cerca de 61% dos portugueses não leram um livro no último ano. Tem um filho que leva ao teatro, como disse anteriormente. Como se deve puxar os mais jovens para a cultura? Procurei desde muito cedo expor o meu filho a provocações artísticas. Coloquei-o numa escola em que tinha um contacto muito grande com as artes performativas. E depois, por inerência, arrastei-o para ver coisas. Ele viu e vê muito teatro, e já tem um olhar crítico. Acho que passa pela educação, necessariamente, na escola. Quanto a mim, os programas deviam ser atualizados porque valorizamos pouco as disciplinas artísticas. Não pode ser apenas a flautinha no 5.º e 6.º ano. Há outro tipo de competências que nos levam para outros patamares de entendimento, até das matemáticas e filosofia. As pessoas não têm que ser todos bailarinos ou músicos ou atores, mas essas competências sensitivas são muito importantes. É uma questão de mudança de paradigma..E o futuro? O que podemos esperar em breve aqui no Trindade? Não posso revelar muito porque vamos a apresentar a nova temporada em maio/junho. Tento não abusar da posição de privilégio para me promover como ator, mas não descuro o contributo que posso dar como ator. E tento alternadamente ou enceno ou represento. Mas para a próxima temporada vamos ter um Shakespeare, temo um Tennesse Williams, e um texto original português, na sala principal. Depois na sala estúdio temos o prémio dramaturgia Miguel Rovisco para novos textos teatrais e agora vamos ter a associação da RTP que vai gravar para ser exibido nas suas plataformas. E depois vou-me associando a estruturas mais independentes e alternativas cujos os objetos caibam na sala estúdio, que só tem 50 lugares, e promover um tipo de teatro diferente da sala principal..Ainda fica nervoso antes de entrar em palco? Sim. Ainda sinto. Sinto o peso da responsabilidade. Não sou meigo e gosto de grandes textos de grandes personagens. Ponho esse peso em cima de mim e dos próprios ombros e dou o peito às balas. E depois tenho ali um momento em que penso "e se isto não correr bem", mas depois quando vejo o feedback das pessoas e vejo se estou ligitimado ou não, se devia fazer outra coisa. Mas no cômputo geral o saldo é muito positivo e sabe bem ter o nosso trabalho reconhecido..filipe.gil@dn.pt