No cinema, que visão temos do Macbeth, de William Shakespeare (1564-1616)? Digamos, para simplificar, que não há uma resposta única, muito menos definitiva. Quanto mais não seja por razões estatísticas: segundo os dados mais recentes disponíveis no site do Guinness World Records (referentes a 2016), existem 98 adaptações da peça sobre o rei da Escócia que, tragicamente, descobre que esta nossa vida atribulada é uma coisa "cheia de ruído e furor que nada significa". A provar que os assombramentos de Macbeth continuam a ecoar no nosso presente, aí está a magnífica versão de Joel Coen, A Tragédia de Macbeth, disponível numa plataforma de streaming (Apple TV+). Dizem os analistas americanos de Hollywood que será uma presença forte nas nomeações para os Óscares (a atribuir a 27 de março), com Denzel Washington a perfilar-se como sério candidato ao título de melhor ator..Em boa verdade, para lá da atividade dos palcos, Shakespeare é, muito simplesmente, o autor mais vezes filmado. Ainda segundo o Guinness, contando com produções cinematográficas e televisivas (coligidas na mesma data), podemos encontrar nada mais nada menos que 1121 adaptações dos seus textos teatrais..No caso de Macbeth, por exemplo, há registos de uma primeira versão (de que não se conhecem cópias), realizada nos EUA, em 1908, com realização de James Stuart Blackton e William V. Ranous, ator de teatro especialista em Shakespeare, como protagonista. Sem esquecer que Shakespeare inspirou também muitas variações, incluindo West Side Story, de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, uma reinvenção musical de Romeu e Julieta também recentemente recriada por Steven Spielberg. Aqui ficam algumas memórias de uma imensa paisagem cinematográfica..Figura central na história do teatro e do cinema "shakespeariano", Laurence Olivier realizou três adaptações em que também assumiu o papel central. Esta foi a primeira (seguiram-se Hamlet, em 1948, e Ricardo III, em 1955), quatro anos depois de Olivier ter rodado Rebecca, sob a direção de Alfred Hitchcock. Com especial impacto da comunidade de Hollywood, valeu a Olivier um Óscar honorário pela "proeza excecional" de levar ao ecrã Henrique V enquanto "ator, produtor e realizador". Para lá da qualidade do elenco, o filme funcionou, na altura, a par de alguns títulos da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger, como exemplo modelar da sofisticação do Technicolor tal como era praticado, a par de Hollywood, pelos estúdios britânicos..Com chancela de um grande estúdio (Metro Goldwyn Mayer), esta produção da idade de ouro de Hollywood nasceu de uma "contradição" que acabou por lhe conferir tanto de estranheza como de fascínio. De facto, a escolha de Marlon Brando para interpretar Marco António era tudo menos óbvia, já que, dois anos antes, em Um Eléctrico Chamado Desejo, sob a direção de Elia Kazan, ele se afirmara como pioneiro do Actors Studio e das suas técnicas de expressão emocional no interior do cinema americano. Rezam as crónicas que o veterano inglês John Gielgud, intérprete de Cassius, serviu de conselheiro a Brando, afinal integrando-o num elenco de luxo que inclui também James Mason, Deborah Kerr e Louis Calhern (como César). A realização é de um mestre clássico: Joseph L. Mankiewicz..Figura central na internacionalização do cinema japonês, Akira Kurosawa foi também um criador seduzido por diversas componentes da cultura ocidental - um dos seus filmes mais premiados, Ran-Os Senhores da Guerra (1985), tem como base O Rei Lear. Quando dirigiu Trono de Sangue (cujo título original se poderá traduzir por "O Castelo Teia de Aranha") tinha já assinado Os Sete Samurais (1954), um dos títulos míticos do cinema clássico japonês. Deslocando a ação de Macbeth da Escócia para o Japão medieval, o filme distingue-se por uma majestosa encenação dos círculos íntimos do poder, sua sedução, violência e vulnerabilidade. No papel central está um dos atores também mais internacionais de toda a história do cinema japonês: Toshiro Mifune..Este filme de Orson Welles é, por certo, uma das mais prodigiosas versões da herança teatral de Shakespeare. Não se trata da adaptação de uma peça, mas da celebração de uma personagem presente ou citada em várias peças - Sir John Falstaff (que Welles compõe com exuberante comoção) -, amigo muito próximo do Príncipe Hal, futuro rei de Inglaterra; foram utilizados textos provenientes de Henrique IV (Partes 1 e 2), Ricardo II, Henrique V e As Alegres Comadres de Windsor. Das várias incursões "shakespearianas" de Welles (incluindo um Macbeth de 1948), esta era a sua preferida, desde logo porque surgiu como prolongamento de uma experiência teatral, Five Kings (1939), já resultante de um elaborado cruzamento daqueles textos. Financiado por Emiliano Piedra, produtor espanhol, o filme pertence ao período em que Welles só ia conseguindo montar os seus projetos na Europa - cronologicamente, surgiu entre O Processo (1962), produção franco-italo-germânica, e História Imortal (1968), telefilme francês também difundido nas salas..Este é o primeiro filme que Roman Polanski realizou depois do assassinato de sua mulher, a atriz Sharon Tate, pelo gang de Charles Manson: daí que a sua encenação muito crua da violência física tenha sido frequentemente descrita como um processo catártico do realizador. Em qualquer caso, encontramos aqui o rigor de uma visão contundente dos fantasmas da dimensão humana, obviamente já presente em Repulsa (1965) ou A Semente do Diabo (1968). Daí também o jogo calculado entre a teatralidade dos diálogos e o realismo das situações, num ziguezague de emoções que encontra a sua expressão exemplar no trabalho de Jon Finch e Francesca Annis, intérpretes do casal Macbeth - um ano mais tarde, Finch seria o protagonista de Frenzy-Perigo na Noite, penúltimo filme de Alfred Hitchcock..Não exatamente uma adaptação de Shakespeare, antes uma reflexão sobre o desafio de encenar Ricardo III. Na dupla condição de ator e realizador, Al Pacino assina um filme a meio caminho entre as exigências do palco e o documentário cinematográfico. Cruzam-se, assim, o registo de uma representação da peça e diversas conversas do próprio Pacino com uma impressionante galeria de atores: Penelope Allen, Alec Baldwin, Vanessa Redgrave, Winona Ryder e Kevin Spacey são alguns dos convocados para esta aventura que tem tanto de pedagogia teatral como de reflexão filosófica sobre a herança "shakespeariana". No limite, trata-se de avaliar a presença dessa herança na cultura popular, a ponto de Pacino combinar os depoimentos dos seus pares com breves entrevistas de rua a cidadãos anónimos..O que é que a música rock tem a ver com o teatro "shakespeariano"? Para o australiano Baz Luhrmann, são dois modos diferentes, mas cúmplices, de conjugar a mesma vertigem romântica. Sem prejuízo de, para mais, tudo acontecer entre duas famílias rivais, não de Verona, mas de Verona Beach, cujos gangs, armas de fogo e automóveis parecem saídos de um policial da década de 1970. De tal modo que esta versão da peça mais universal de Shakespeare se mantém obsessivamente fiel ao texto, ao mesmo tempo que preenche a sua banda sonora com temas de grupos como os Garbage, The Cardigans ou The Wannadies. Escusado será dizer que os resultados são bem diferentes das mais célebres versões anteriores, incluindo as de 1936 e 1968, assinadas, respetivamente, por George Cukor e Franco Zeffirelli. Consagrando os seus intérpretes principais - Leonardo DiCaprio e Claire Danes -, Luhrmann transfigurou Shakespeare em arauto da cultura pop..Entre os filmes que já representaram o próprio poeta, este Shakespeare in Love, produzido pela Miramax de Harvey Weinstein, continua a ser um dos mais conhecidos. Num registo assumidamente ficcionado, acompanhamos Shakespeare no Rose Theatre, em Londres, quando escrevia Romeu e Julieta, apaixonado pela também fictícia Viola de Lesseps. Sob a direção de John Madden, com Joseph Fiennes e Gwyneth Paltrow a interpretar o par amoroso, o filme aposta numa "reconstituição" vistosa, abrilhantada por um elenco em que coexistem ingleses e americanos: Colin Firth, Ben Affleck, Judi Dench, Imelda Staunton, Tom Wilkinson, etc. Venceu os Óscares do ano, com sete distinções, incluindo melhor filme, mas a estatueta dourada de melhor realização foi para Steven Spielberg (O Resgate do Soldado Ryan)..Na década de 1980, Kenneth Branagh surgiu como herdeiro "natural" de Laurence Olivier - curiosamente, também se estreou na realização com Hamlet (1989). Esta sua versão de As You Like It é especialmente significativa pelo modo como celebra a obra de Shakespeare enquanto território sempre aberto às mais insólitas transfigurações. Neste caso, a aventura centrada na demanda do amor pela personagem de Rosalind, passa do domínio de Arden, algures na Europa do século XVI, para uma colónia europeia no Japão do século XIX. Desta vez, Branagh não representa, estando a personagem de Rosalind entregue a Bryce Dallas Howard, à frente de um elenco que inclui David Oyelowo, Romola Garai e Kevin Kline. É, além do mais, um esclarecedor exemplo do humor que circula por muitos textos de Shakespeare..dnot@dn.pt