Vai-se a meio do novo romance de Sérgio Godinho e surge a seguinte afirmação: "Somos todos cúmplices de vários crimes." Sentiu-se um criminoso ao escrever este livro é a primeira pergunta ao autor de Estocolmo, que se defende dizendo que "esta é a fala de uma personagem". No máximo, o autor aceita ser um "criminoso benigno", mas a razão de se "sentir" assim deve-se às suas incursões repetidas na ficção narrativa. O regresso à escrita tem alguns anos, recorda, e "com uma continuidade consistente", ou seja, diz, elevando o grau da sua "criminalidade": "Já sou um serial killer, se formos por aí.".A frase que dá início à entrevista é depois explicada deste modo: "É o que diz o diretor à jornalista numa conversa em que acusa a profissional de não ser a guardiã-mor da deontologia por ter dado uma fake new no noticiário que apresenta." Estocolmo, no entanto, ainda é do tempo em que as fake news não eram grande notícia, apenas serve de pretexto para a ação do romance: "A intenção não é falar desse tema, antes tem que ver com a vida estranha que a protagonista está a viver." Mas essa praga que invadiu a comunicação social não deixa de ser criticada pelo autor: "Tudo depende do meio de comunicação. Há noticiários que não são inventados de cabo a rabo, contudo existem certos jornais e televisões que usam à exaustão assuntos que não estão totalmente provados." Especifica: "Por isso é que há desmentidos e estão a passar-se coisas muito estranhas num certo jornalismo, até alimentadas por fugas de informação de entidades que deveriam manter o segredo de justiça. Ou seja, aqui também cúmplices.".As fake news levam a conversa para outro patamar, o de tomarem uma relevância ao ajudarem a eleger presidentes: "Com tipos como Trump e Bolsonaro, a desinformação é também uma arma." Daí a passar para os tempos em que foi preso no Brasil é um pequeno passo: "Ainda hei de escrever sobre as minhas prisões no Brasil, a primeira vez em 1971." Pressente-se uma novidade e quer-se saber se será autobiográfico: "Alguma coisa será, ainda não sei bem como.".Será que as detenções no Brasil substituíram a pesquisa sobre o tema? Não, pelo contrário, "foi o livro que me levou a recordar os meus próprios episódios de prisioneiro, que não foram muito longos [mais de um mês] mas bastante intensos. Tudo isso veio ter comigo, até porque sou muito sensível aos que estão presos, às suas condições e aos abusos dentro da prisão"..Em Estocolmo, a prisão é outra: "O livro centra-se em muito na sensação de quem está cativo e quero mostrar com a narrativa a grande ambiguidade na relação existente entre as duas personagens principais. Que é tão perversa como mantida de parte a parte e em muito paralelo ao que é um retrato de toda a sociedade, em que as relações entre as pessoas são de dependência e muito pouco saudáveis.".De certo modo, diz Sérgio Godinho, este livro "foca em muito a sensação do prisioneiro interpretada por um rapaz mais novo, mas que aceita o jogo de sedução e de amor de uma mulher mais velha". Ou seja, o leitor está perante a história de alguém que "está cativo e sente uma grande ambiguidade na relação existente entre as personagens principais, porque a relação é tão perversa como mantida de parte a parte". Esta ambiguidade, assegura, "é o tema principal do livro"..Este é um segundo romance que não impede a sua carreira enquanto músico: "Antes de um dia escrever essas memórias parcelares [aquelas em que conta a prisão] ainda quero escrever mais ficção e canções. Estocolmo foi escrito na continuidade dos outros livros porque já tinha o ponto de partida. Depois de fazer a primeira versão, parei porque queria dedicar-me à música e fiz o disco Nação Valente que saiu há um ano. Quando acabei o disco retomei Estocolmo e foi bom ter parado porque torna-se a olhar para as coisas de outra forma. Reescrevi certas partes e depurei o que tinha escrito a mais.".Duas noites nos coliseus.Um ano depois, Sérgio Godinho vai subir aos coliseus de Lisboa (a 22) e do Porto (a 28), após uma reedição com um disco extra do último trabalho. Serão duas noites com três convidados, Camané, Manuela Azevedo e Filipe Raposo. "Estamos a ensaiar e haverá material novo.".Tanto no palco como nos livros, Sérgio Godinho sente a exigência do público: "O leitor exige sempre porque sou reconhecido noutra área, mas não quero ficar só nesse consenso e ter medo de arriscar noutros jardins." Não nega que há sempre uma comparação entre quem faz canções e livros e que o benefício da dúvida é pequeno: "Sempre foram exigentes! Também não quero condescendência, por isso mantenho sempre um grau de exigência em mim. Tal como nas canções, não se deve ter medo no livro. Mesmo assim, como escrevo principalmente à noite, muitas vezes vou dormir a achar que está ótimo o que escrevi e na manhã seguinte descubro que mudei - ou não - de opinião. Muitas vezes sei que não vai ser a frase definitiva, mas não receio ter de encontrar a coisa certa depois.".O argumento de Estocolmo.Só a um terço da leitura é que se percebe o tema do livro. Sérgio Godinho considera que "não é para se saber logo mas também não é um segredo, aliás, na contracapa, percebe-se bem que não é um livro de viagens que meta a cidade de Estocolmo - espero que não os ponham nas estantes de turismo e viagens!"..O tema do livro é a síndrome de Estocolmo: "Parti da atração doentia entre um raptor e um cativo e o que fiz foi inverter a situação mais comum, pois aqui é uma mulher mais velha que se envolve com um jovem." Porquê inverter? "Achei que era interessante alterar esse infeliz clichê e, como é dito no romance, muitas vezes as grades são invisíveis em muitas relações. Essas algemas invisíveis são também uma metáfora das ambiguidades nas relações humanas.".Questiona-se porque não tem a protagonista problemas de consciência em relação ao que faz ao jovem: "Ela é muito perversa, mesmo assim o agressor acaba muitas vezes por pedir desculpa e por ser perdoado." Ou sobre alguma linguagem muito explícita: "Isso é mais nos diálogos, o narrador não usa muitos palavrões. Nada tenho que ver com isso [risos] e quem leu o livro anterior, Coração mais Que Perfeito, já se deparou com coisas mais chocantes. É importante ter esse desequilíbrio entre o que o narrador não usa mas as personagens sim. A protagonista tem também um lado 'rasca', segundo diz a mãe, e também me interessou dar esse lado oculto das pessoas. Toda a gente tem um lado dissonante em relação à imagem que se dá e a verdadeira.".Quanto à investigação preparatória para o livro, Sérgio Godinho é claro: "Muito pouca, li alguma coisa, mas estas situações limite interessam-me." Entre o que leu estava o relato de Natascha Kampusch, no qual percebeu como "uma pessoa inteligente tem dificuldade em sair daquele cativeiro". No caso do seu livro, refere, "há uma passividade nele e o facto de não se conseguir libertar apesar de o poder fazer confirma-o"..Se este é um tema que ficcionalmente interessa o autor, pode-se dizer que está escrito quase como um guião para um filme. Sérgio Godinho garante que não o fez de propósito mas aceita que é adaptável ao cinema. Confessa, aliás, que há um projeto nesse sentido....Estocolmo.Sérgio Godinho.Editora Quetzal, 158 páginas