Sem descanso, médicos consideram contratação em tempo de pandemia insuficiente

Ordem e sindicatos dizem que há médicos sem conseguir tirar folgas ou férias e alertam para a necessidade de reforçar número de especialistas. Dos 2300 profissionais de saúde contratados durante o surto do novo coronavírus, cem são médicos. Número "insuficiente" e "irrisório" para a classe.
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Horas de sono perdidas, trabalho intensivo e prolongado a lidar com o desconhecido. Os relatos sucedem-se e focam-se, principalmente, nas saudades da família, que muitas vezes está noutra casa. A solidão do fim do turno é ainda pior do que a agitação do dia de trabalho. Dois meses depois de a pandemia de covid-19 ter chegado a Portugal, os profissionais de saúde acusam cansaço acumulado. "Não se pode esperar que os médicos continuem a trabalhar de forma indefinida desta maneira", lembra Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM).

Com férias e folgas adiadas, não há outra equipa à vista para os substituir. Dos cerca de 2300 profissionais de saúde que o Governo contratou para reforçar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) nesta altura, segundo o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, cem são médicos. "É evidente que vamos precisar de mais", diz o bastonário da classe, Miguel Guimarães. Para o responsável pela FNAM trata-se de um número "irrisório", e para o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Jorge Roque da Cunha, é "claramente insuficiente".

Não hesitam em dizer que os problemas não são de agora (que já havia listas de espera e que era preciso valorizar a profissão). Mas os tempos que se avizinham serão ainda mais desafiantes. A juntar à linha da frente do combate à covid-19, é necessário responder às outras patologias e atender quem viu consultas, exames e cirurgias adiados, como consequência da situação pandémica. "Será um teste de stress ao Serviço Nacional de Saúde", antevê o cirurgião do Hospital de Viseu Noel Carrilho.

O bastonário encontra no momento, além de uma prova de esforço, uma oportunidade para "pensar na transformação do SNS". "Os médicos fazem mais de seis milhões de horas extraordinárias por ano. O Estado gasta mais de cem milhões de euros em prestadores de serviço. O que significa que temos um défice no SNS de pelo menos cinco mil médicos. Se quisermos estabilizar estes números, temos de contratar médicos, para melhorar a resposta e para construir uma reserva de reação para este tipo de casos. Não podemos ficar abaixo da média europeia em parâmetros como o número de camas de internamento", indica Miguel Guimarães.

Jorge Roque da Cunha diz que isto resume-se a "uma questão de matemática". É preciso mais ajuda e pede ao Governo que aumente a contratação destes profissionais, oferecendo-lhes condições aliciantes em vez de "palmadinhas nas costas". "Os médicos de saúde pública e os intensivistas estão a trabalhar sem gozarem as suas folgas, ininterruptamente", refere o médico de família, que exerce em Camarate, Lisboa.

Até porque, recorda o presidente da FNAM, nem todos os médicos "estão a trabalhar nas mesmas circunstâncias". "Há médicos isolados, infetados, médicos que são doentes de risco. Só para os índices de produtividade expectáveis, esses cem [especialistas contratados] não chegarão", segundo Noel Carrilho. Os últimos dados oficiais, atualizados em abril, apontavam para cerca de 400 especialistas infetados com o novo coronavírus.

O Ministério da Saúde tem repetido que a contração de profissionais é feita de acordo com as necessidades e que os conselhos de administração de cada hospital estão autorizados a fazer contratos diretos de quatro meses, no âmbito covid-19, doença que já fez 1074 mortes e 25 702 infetados em Portugal, até esta terça. Enquanto isto, o Governo compromete-se a "continuar a reforçar, a preparar e a robustecer o SNS, para que dê respostas a quem dele precisa, seja no parto, na prevenção de doenças, no diagnóstico ou nos tratamentos", disse António Lacerda Sales, em conferência de imprensa. Na mesma altura especificou que entre os cerca de 2300 profissionais contratados em plena pandemia estão 750 enfermeiros, cem médicos, 1 100 assistentes operacionais, 150 técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e 150 assistentes técnicos.

O bastonário dos médicos sublinha que é preciso saber se mesmo estes cem profissionais serão contratados para o SNS ou se ficarão apenas durante os quatro meses do contrato, lembrando que entregou à tutela uma lista com mais de 4500 médicos disponíveis para trabalhar nos hospitais públicos nesta época.

"Quando é a melhor altura para falar de risco?"

Os médicos não podem fugir ao risco. Podem ter todos os cuidados de higiene e estar munidos de equipamentos de proteção pessoal, mas mesmo estas circunstâncias não os livraram do contacto próximo com os casos positivos de infeção pelo novo coronavírus. O risco faz parte do trabalho, mas querem que este seja reconhecido, por isso continuam a pedir um subsídio de risco.

"Se já era evidente antes, com a situação da covid é absolutamente flagrante a necessidade de um regime de penosidade e de risco acrescido", diz Noel Carrilho.

A tutela tem remetido esta questão para mais tarde. "Deverá ser ponderada a médio prazo. Não é a altura própria para o fazer, uma vez que tantos portugueses passam dificuldades", respondeu o secretário de Estado da Saúde à pergunta do DN, em conferência de imprensa, no final de abril, sobre se estava a ser equacionado algum complemento de compensação ou subsídio de risco para os profissionais de saúde.

Perante estas declarações, o presidente da FNAM pergunta: "Quando é a melhor altura para falar de risco?" Acrescentando que "a seguir vem a crise, condições económicas difíceis, portanto também não será a melhor altura para falar". Assim, pede ao Governo que considere esta matéria, como acontece noutros países, como a Alemanha.

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