O último ano foi, apesar da crise editorial e livreira provocada pela pandemia, um dos mais importantes momentos de publicação de trabalhos de investigação histórica sobre Portugal. Entre as dezenas de livros originais, inovadores na visão e com uma análise mais fina sobre o país recente que estudiosos de áreas ligadas à sociedade, economia e cultura conseguiram publicar está o volume fundamental: O Século XX Português. .Os seus autores são conhecidos e, principalmente, especialistas nas áreas que desenvolvem nestes ensaios e pretendem efetuar uma das primeiras análises abrangentes sobre o que está bem caracterizado no título. E, apesar de só vinte anos terem passado sobre o fim do século, já se podem questionar e rever muitos dos acontecimentos que marcaram a vida nacional em todos os aspetos e que no início do ano 2021 começam a revelar-se melhor, bem como eliminar erros de interpretação com que o último quarto desse século ainda era capaz de enviesar a sua interpretação..Os responsáveis por esta nova história assinam cada um deles o seu capítulo: Fernando Rosas radiografa os quatro regimes políticos do século XX português, Francisco Louçã a questão de uma economia nem sempre evolutiva, João Teixeira Lopes as desigualdades desses cem anos, Andrea Peniche a situação da mulher, Luís Trindade o setor da cultura e Miguel Cardina o passado colonial..Logo na introdução, explica-se em sete páginas as linhas que estruturam o todo da interpretação e caracterizam-se as três as grandes traves que atravessam o livro: a persistência da desigualdade, o papel central do Estado e das políticas dominantes na produção - a três níveis: económica, social e cultural - e o peso ideológico do colonialismo no passado e no presente. Em poucas palavras, os autores definem um parâmetro que engloba as várias áreas sob um mesmo chapéu: a persistência da desigualdade ao longo do século XX português e que, contrariando as duas grandes revoluções (a de 1910 e a de 1974) mostram uma resiliência no que respeita à reconstituição dos interesses de uma oligarquia que se eterniza sob vários matizes durante todo o período temporal em observação e a qualquer dos seus níveis. Capítulo a capítulo, cada um dos autores elabora a explicação de como, escrevem, se dá a "capacidade de adaptação aos safanões das crises económicas, recompondo-se do transitório choque das duas revoluções populares, moldando-se aos processos de massificação cultural, recauchutando o nacionalismo colonialista e lusotropicalista no novo quadro da "normalização democrática" pós-colonial". Em suma, consideram, a síntese do século revê-se numa "modernização conservadora" que é acompanhada de "escassa justiça distributiva", sem "desenvolvimento sustentado", com a manutenção de uma desigualdade que se concretiza ao longo do tempo estudado por via das "diferenças" sociais, culturais e numa discriminação a diversos níveis..Os autores não fecham a porta à tarefa iniciada nesta história de O Século XX Português, afirmando que a escolha dos tópicos abordados foi os que no seu entender explicam a globalidade do período e que permitem "relançar o debate indispensável sobre o nosso passado recente". .No seu capítulo, Fernando Rosas elenca os quatro regimes que vigoraram: desde a decadência da monarquia constitucional, à insurgência republicana de 1910 e à I República, seguindo-se o Estado Novo e o pós-1974. Refere o quanto o centenário da República (2010) trouxe de volta a discussão sobre a derrota desse regime, tema ainda muito por estabelecer; demora-se no Estado Novo, assunto que ainda não se fixou de forma esclarecida nas mentes contemporâneas, designadamente no aspeto da "violência preventiva" e na aliança Salazar, Igreja e Exército, para narrar a incapacidade de Caetano se confrontar com a mudança obrigatória; daí o estágio seguinte: a pulverização da autoridade do Estado pós-25 de Abril durante meses, até ao monopólio rotativo do poder em curso..No seu capítulo, Francisco Louçã destaca a dificuldade antiga de Portugal convergir com as economias dominantes da Europa, o que "marcou a nossa modernidade"; refere a questão da dívida soberana que coexiste com o fim da monarquia - e coexistirá em vários períodos posteriores - e foca-se no crescimento económico durante a ditadura, sempre com o Estado omnipresente e um intervencionismo que se tornou vigoroso apesar de o país ser o mais rural da Europa. Em conclusão, considera que a "acumulação de capital em Portugal ao longo do século XX foi um gigantesco desperdício", o que exige a leitura da sua narrativa para entender bem aquilo que define como "jaula oligárquica", quadro que nem a adesão à União Europeia permitiu alterar os modelos económicos do país e eliminar "as grandes ilusões do virar do século"..No seu capítulo, João Teixeira Lopes começa por afirmar a dificuldade em encontrar esquemas teóricos para se categorizar a sociedade portuguesa do século XX: "Quando o século parecia imóvel, na verdade movia-se por impercetíveis e subterrâneas transformações; quando explode em rutura revolucionária, logo se manifestam as raízes das estruturas sociais mais pesadas e conservadoras". Socorre-se de modelos de organização territorial para explicar a evolução demográfica, as ruturas a par do aumento de coesão social, para concluir: "A grande lição do século XX é revelar-nos Portugal como um país de coexistência de assincronismos.".No seu capítulo, Andrea Peniche começa por o titular de forma acutilante: "A aventura das mulheres". E não é para menos pois, leia-se, "se as Leis da Família de 1910 consagraram, mesmo que no plano teórico, a igualdade no casamento", os sucessivos reveses legislativos fizeram que as portuguesas não acompanhassem o movimento internacional na conquista de uma igualdade, mesmo no pós-25 de Abril. Socorrendo-se de ditados populares ou de exemplos reais que iludem uma aparente evolução dos direitos, a autora historia as mudanças, até no direito ao corpo..No seu capítulo, Luís Trindade pretende "reconstituir as condições sociais e históricas em que as práticas culturais se materializaram ao longo do século XX em Portugal". Uma frase destaca-se para a compreensão deste setor: "Além de misteriosa, a cultura portuguesa produz igualmente uma ocultação." Ou seja, secundariza o contexto histórico e esconde as condições materiais de produção, situação que não desaparecerá ao nível da idealização até ao fim do século..No seu capítulo, Miguel Cardina trata do passado colonial, iniciando pela "semântica nacionalista" e a "épica do império" que o Estado Novo exercitou. Se anteriormente, diz, a "ocupação portuguesa do continente [africano] era remetida a algumas faixas do litoral, a partir de meados do século XIX ganharia crescente relevância". Daí comentar a "reconfiguração do ideário colonial durante o Estado Novo, a guerra e as independências", seguindo-se o exame da "memória do colonialismo e da guerra no Portugal democrático". Um capítulo longe de estar fechado, tal a necessidade de nas últimas páginas vir até a dias e exemplos bem recentes..Fernando Rosas, Francisco Louçã, João Teixeira Lopes, Andrea Peniche, Luís Trindade e Miguel Cardina.Editora Tinta da China.415 páginas