Saúde no "vazio" à espera de novo titular, Marcelo quer mais autonomia no SNS

No dia em que Marta Temido anunciou a demissão, Presidente da República pôs pressão sobre a regulamentação do novo estatuto do SNS. Substituição da ministra não será para já, uma solução que suscitou estranheza. António Costa responde à oposição dizendo que, se quer mudar as políticas, tem de derrubar o governo.
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Chegou a ser a ministra mais popular do Governo, mas não resistiu ao pós-pandemia, marcado por sucessivas crises no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Marta Temido bateu com a porta e, "desta vez", António Costa viu-se obrigado a aceitar a saída da titular da Saúde, cuja demissão não será colmatada para já. Com os partidos e as ordens profissionais do setor a reclamarem mudanças, o primeiro-ministro já deixou a resposta: o ministro vai mudar, a política do Governo não. Mas de Belém veio um aviso: o SNS deve funcionar mais independente do ministério.

Confessando que não esperava a saída da ministra da Saúde, António Costa disse ontem que Marta Temido ainda deverá ir ao próximo Conselho de Ministros apresentar o diploma da criação da direção executiva do SNS, o que deverá adiar por cerca de duas semanas a nomeação de um sucessor.

Um hiato "um bocadinho complicado do ponto de vista do funcionamento do SNS", considera a antiga ministra da Saúde, Ana Jorge. O mesmo defende Constantino Sakellarides, ex-diretor-geral da Saúde e antigo presidente da Escola Nacional de Saúde Pública, que acredita que o primeiro-ministro ainda vai "reconsiderar" esta decisão que deixa o SNS num "vazio": "Julgo que isto vai ser corrigido, da forma como funciona o nosso sistema a situação do SNS não suporta 15 dias sem o ministro da Saúde" em plenitude de funções. Ontem, o sindicato dos enfermeiros veio defender a "substituição imediata" da ministra invocando as negociações relativas à carreira que decorrem há quatro meses e por "forma a minimizar a instabilidade crescente no Serviço Nacional de Saúde ".

Após dois mandatos marcados pelas tensões com vários setores profissionais da Saúde, estes responderam ontem à demissão da ministra com críticas, declarações de que era uma saída inevitável e um apelo ao diálogo do futuro titular da pasta. Críticas que se repetiram também entre os partidos, mas, mais do que à ministra, com as baterias apontadas às políticas do Governo para o setor da Saúde. Na resposta, António Costa já fez cair por terra as exigências da oposição : "Quem quer mudança de políticas tem que derrubar o Governo". Mas houve uma outra voz a defender mudanças na área da Saúde.

Depois da publicação de uma nota, logo pela manhã, no site oficial da Presidência, dizendo aguardar a "formalização do pedido de exoneração, bem como da proposta de nomeação de novo titular" para a Saúde, Marcelo Rebelo de Sousa voltou ao tema da Saúde à tarde, numa participação por vídeo conferência na Universidade de verão do PSD. E para defender a gestão "mais autónoma" do SNS face ao ministério, dado que a "forma de dependência direta clássica demonstrou limites na sua eficácia". O Presidente da República, que recentemente promulgou o estatuto do SNS com "dúvidas", disse também que vai "esperar para ver" a regulamentação, "para ver o que é que isso significa, se dá o que todos pretendemos ou se dá apenas uma solução conjuntural que depois na prática não consegue estar à altura dos seus objetivos".

Cinco meses após a tomada de posse do novo Governo, António Costa vê-se assim obrigado a mexer num dos cargos de topo do Executivo, numa área sensível como a Saúde. O primeiro-ministro disse ontem que ainda vai ponderar o nome do sucessor de Marta Temido, mas à partida há alguns nomes no lote de possíveis ministeriáveis. A começar por António Lacerda Sales, atual secretário de Estado adjunto e da Saúde, que ontem "caiu" com a ministra. Outro nome possível apontado entre os socialistas é o de Manuel Pizarro, médico, antigo secretário de Estado e atual deputado ao Parlamento Europeu. Fora de um perfil mais partidário, Fernando Araújo, médico e presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de São João, ex-presidente da Administração Regional de Saúde do Norte e antigo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, também é falado como um possível sucessor.

Depois de um verão marcado pelas dificuldades nos serviços de urgência, em particular de obstetrícia, Marta Temido apresentou a demissão na madrugada de terça-feira, depois da notícia da morte de uma grávida transferida do hospital de Santa Maria para o São Francisco Xavier. Uma situação que o próprio primeiro-ministro admitiu que tenha sido "a gota de água" para a titular da Saúde que, ao que se infere das palavras de Costa ao afirmar que "desta vez" aceitou, já teria anteriormente pedido para sair.

"Percebo que tenha sido a gota de água que fez transbordar o copo numa situação já muito tensa, mas ao que se sabe não houve aqui uma falha dos serviços. Fui diretora de um serviço de pediatria muitos anos, com responsabilidade no neonatal, e isto acontece "n" vezes", diz Ana Jorge, que atribui a saída da ministra a um acumular de problemas e tensões no setor. "Havia aqui já há algum tempo alguma falta de diálogo e, embora a responsabilidade nunca seja só de um dos lados, há situações que não foram ultrapassadas, as coisas não correram bem entre a ministra e as várias ordens do setor". Quanto ao sucessor, tem "grandes desafios" pela frente, numa área sensível em que "é preciso dar resposta aos problemas das pessoas" e "apaziguar os ânimos" com os profissionais do setor. "Os profissionais de saúde nem sempre foram bem tratados, quer pelas administrações, quer pelo próprio ministério. Precisam de uma resposta de fundo" - o que passa obrigatoriamente pela "progressão nas carreiras", diz.

Para Constantino Sakellarides o grande desafio do próximo titular da Saúde passa por "transformar o SNS num serviço do nosso tempo". "É por ai que temos de avançar, é um caminho difícil que exige liderança política, colaboração entre o ministério e os profissionais, entre o público e o privado", diz ao DN, sem dúvidas de que este é o "ministério mais difícil" de todo o Executivo, que "acumula problemas de muitas décadas", que "não recuperou dos cortes severos do tempo da troika". E que, tendo tido uma "boa resposta à situação de pandemia, desgastou-se muito", com os profissionais da Saúde a trabalharem em "situações penosas" que agora os levam a deixar o Serviço Nacional de Saúde em grande número. Acresce que as "associações profissionais não ajudam muito: é preciso um bom diálogo entre todas as partes".

susete.francisco@dn.pt

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