"O que aconteceu foi totalmente inesperado"
Os diretores de obstetrícia e de neonatologia do Hospital de Santa Maria explicaram que a necessidade de transferência in útero é uma prática recomendada ao nível internacional. Depois de estabilizada a situação clínica, a grávida foi transferida por falta de vagas no serviço de neonatologia. Terá sido a "gota de água" de Marta Temido. Inspeção-Geral das Atividades em Saúde abriu inquérito e o Ministério Público também.
O caso terá sido a "gota de água" para Marta Temido, admitiu o chefe do Governo, António Costa. Foi revelado poucas horas antes de anunciar a demissão do cargo de ministra da Saúde, numa altura marcada pela crise nas urgências do Serviço Nacional de Saúde (SNS), nomeadamente na especialidade de obstetrícia/ginecologia. O caso é o de uma grávida que morreu após paragem cardiorrespiratória durante a transferência do Hospital de Santa Maria, do Centro Hospital Universitário Lisboa Norte (CHULN), para o Hospital São Francisco Xavier, por falta de vagas no serviço de neonatologia.
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Como prometido, os diretores dos serviços de obstetrícia e de neonatologia do Santa Maria explicaram ontem, em conferência de imprensa, o que aconteceu com esta grávida, já Temido tinha apresentado a demissão. Após as explicações da equipa médica, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) anunciou um inquérito à transferência da grávida que acabou por falecer.
Mais tarde, foi a vez do Ministério Público anunciar a abertura de um inquérito, determinando "a realização de autópsia médico-legal" à mulher grávida. Foi um acontecimento "inesperado", uma vez que a "estabilidade clínica" da mulher "não fazia prever" o desfecho fatal, afirmaram a diretora de obstetrícia, Luísa Pinto, e o diretor de neonatologia, André Graça, do Hospital de Santa Maria. A grávida, de 34 anos, morreu. O recém-nascido encontra-se "bem".
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A mulher, de origem indiana, estava de 31 semanas, "tinha vindo do estrangeiro alguns dias antes" quando, na madrugada de 23 de agosto recorreu ao serviço de urgência do Hospital de Santa Maria "por sensação de falta de ar e taquicardia". Isto numa altura em que não havia vaga na neonatologia do Santa Maria devido a um "pico de internamento", segundo André Graça, responsável por este serviço.
"Estamos permanentemente com uma taxa de ocupação relativamente alta e que em picos se aproxima dos 100%", destacou o clínico, dando conta que os serviços têm respondido em rede.
"Em determinados períodos de pico, nós não podemos multiplicar as vagas", reforçou, indicando que "existem rácios de equipas" para que o tratamento aos recém-nascidos internados "possa ser feito em segurança". "Isso define o número de vagas que temos", esclareceu.
Quando a grávida deu entrada nas urgência observou-se uma "tensão arterial muito elevada, pelo que foi imediatamente internada no bloco de partos". "Aí foram tomadas todas as medidas naquilo que era a nossa primeira hipótese de diagnóstico: pré-eclâmpsia", relatou Luísa Pinto. Disse que os médicos não tiveram acesso ao historial clínico desta mulher, que não falava português nem inglês, desconhecendo se a grávida tinha alguma patologia.
Continuou dizendo que "a grávida ficou estabilizada ao fim de poucas horas". "Mesmo assim mantivemos a vigilância para ter a certeza que tudo estava bem, não só em termos maternos, mas também em termos fetais", disse.
Sem vagas na neonatologia foi tomada, mais tarde, no mesmo dia, a decisão de transferir a grávida, quando a situação clínica da mulher já estava estabilizada. A transferência in útero é prática recomendada em todo o mundo, afirmaram os diretores clínicos. "É o que está preconizado", diz a responsável da obstetrícia. Ocorre devido à "estabilidade da situação clínica e por ser o melhor para este bebé", detalhou. Situação que é "algo frequente", o funcionamento em rede, "tendo em conta as vagas neonatais e a saúde do bebé", acrescentou Luísa Pinto.
O diretor clínico do Santa Maria, Luís Pinheiro, assegurou: se houvesse alguma suspeita de perigo, "no limite, faríamos o parto cá".
"A recomendação em todos os países do mundo é evitar que os bebés nasçam num local e sejam transferidos de ambulância, o melhor meio de transporte é o útero da mãe", disse André Graça. "O que aconteceu foi totalmente inesperado", acrescentou o diretor do serviço de neonatologia.
Afirmação reforçada pelo diretor clínico. "O acontecimento da paragem cardíaca foi inesperado, aconteceu 10 a 15 minutos após ter saído daqui".
No decurso do transporte verificou-se algo que "não era de todo expectável, dada a estabilidade clínica, que foi uma paragem cardiorrespiratória", explicou Luísa Pinto. Foram "imediatamente iniciadas as manobras de suporte básico de vida e, infelizmente, quando a ambulância chegou ao hospital, a grávida ainda se mantinha em paragem [cardiorrespiratória]", tendo sido "realizada uma cesariana de urgência". "O recém-nascido encontra-se bem, mas, como sabemos, o desfecho materno foi fatal", lamentou.
Questionada pelos jornalistas, a diretora do serviço de obstetrícia afirmou: "Se houvesse mais uma vaga teria ficado". Sobre se o desfecho da situação poderia ter sido diferente, a médica reconheceu que "provavelmente não", tendo admitido, no entanto que, "se calhar uma reanimação numa ambulância é diferente do que num hospital".
Crise dura há meses, com falta de médicos para completar escalas
Após este caso ter sido tornado público, Marta Temido anunciou a demissão, que acaba por surgir na sequência de uma crise nos serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia.
A situação agravou-se desde junho, altura em que o país tem sido confrontado com notícias de urgências de obstetrícia/ginecologia a fechar durante um determinado período, horas ou mesmo dias, como fins de semana, devido à falta de médicos para assegurar as escalas de urgência. O que tem acontecido um pouco por todo o país.
Para tentar responder às dificuldades em manter estes serviços em funcionamento, o Governo decidiu constituir uma Comissão de Acompanhamento da Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos, mas os encerramentos mantiveram-se.
Multiplicaram-se escusas de responsabilidade de médicos e enfermeiros. Aliás, médicos de ginecologia e obstetrícia e internos de Medicina Interna escreveram à ministra da Saúde, fazendo notar a necessidade de melhorar as condições na prestação de cuidados de saúde, denunciando horas extra além das 150 anuais, conforme diz a lei.
Uma crise, entre muitas, no SNS, que acumula há anos problemas na sua gestão e que terá tornado a posição de Marta Temido (ainda mais) fragilizada e a optar por decidir sair do Executivo.
Casos que marcaram crise nas urgências obstetrícia/ginecologia
Os encerramentos nos serviços de urgência de obstetrícia/ginecologia têm sido marcados por casos que têm sido tornados públicos e alvo de investigação.
A 9 de junho, uma grávida deslocou-se ao Hospital das Caldas da Rainha, do Centro Hospitalar do Oeste (CHO), mas o serviço de urgência de obstetrícia/ginecologia estava encerrado ao Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do INEM, o que terá atrasado a assistência a esta grávida. O bebé acabou por morrer.
Numa das conclusões da análise que a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) fez ao caso é referido que no dia 9 de junho, tal como no dia anterior, o CHO não conseguiu completar a escala de ginecologia/obstetrícia, situação que era do conhecimento do conselho de administração, mas este órgão "não procedeu à elaboração de um plano de contingência para assegurar a continuidade deste serviço, não definiu uma estratégia de comunicação interna, nem comunicou à população a existência de restrições".
A IGAS acabou por recomendar a instauração de um processo disciplinar à médica assistente hospitalar de obstetrícia/ginecologia que assistiu a grávida, uma vez que pode "ter violado os seus deveres funcionais". A entidade abriu um processo disciplinar à trabalhadora que recusou a inscrição da grávida "sem ter solicitado ao médico em funções como 'chefe de banco' a avaliação do estado clínico da utente".
No mês passado, a 28 de julho, uma grávida teve de percorrer 100 quilómetros para ser assistida no Hospital de Santarém, uma vez que a urgência de obstetrícia e ginecologia do Hospital de Abrantes, a mais próxima, estaria com limitações, devido à falta de médicos para completar escalas. A mulher, de 41 anos, com uma gravidez considerada de risco, acabaria por perder o bebé antes de chegar ao Hospital de Santarém, segundo a SIC. A IGAS abriu um inquérito a este caso, anunciou o secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, assim como Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT), ao qual pertence o Hospital de Abrantes.
Já este mês, no dia 22 agosto, uma grávida, residente na Amora, concelho do Seixal teve de atravessar três distritos para ser atendida, devido a limitações nos hospitais de Setúbal e Lisboa. Foi encaminhada de madrugada para o Hospital de Santarém, a mais de 100 quilómetros, mas terá sido por falta de anestesistas nesta unidade hospitalar que esta mulher, de 26 anos, viria a dar à luz no Hospital das Caldas da Rainha, no distrito de Leiria, conforme contou o marido ao Correio da Manhã.
A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) abriu, entretanto, um inquérito para apurar as circunstâncias do atendimento desta grávida, que a residir no Seixal foi levada para o Hospital de Santarém e depois transferida para as Caldas da Rainha, onde a bebé acabou por nascer.