Há vozes que têm dentro a capacidade de convocar o cheiro do teatro, a expectativa de quem espera a subida do pano, a emoção da palavra projetada no espaço. Ao receber a jornalista em sua casa num domingo quente de primavera, São José Lapa pode estar a falar-nos dos seus gatos ou simplesmente das obras que fez no soalho e, no entanto, aquele timbre grave, inconfundível, devolve-nos toda uma galeria de personagens, desde a Mrs. Erlynne, de O Leque de Lady Windermere, à deliciosa Natacha Seminova do programa de Herman José Casino Royale.. Mas o teatro não foi uma vocação irresistível, admite agora, quando passa meio século sobre a sua estreia, na peça Deseja-se Mulher, de Almada Negreiros, em junho de 1971. "Comecei por acompanhar a minha irmã Fernanda Lapa, sete anos mais velha do que eu, aos ensaios da Casa da Comédia, por insistência dos meus pais, a quem parecia mal que ela fosse sozinha, apesar de andar lá por lá o próprio Almada e de a Casa da Comédia ser dirigida por uma figura tão justamente respeitada como o Fernando Amado. Por causa disso, vi muito teatro em miúda, mas, nessa idade, não me pareceu uma opção profissional.".No entanto, foi no seio da família que São José (assim chamada por ter nascido no dia deste santo, 19 de março, em 1951) teve o primeiro contacto com as artes: "A minha mãe tinha o curso superior de piano e canto, era professora de piano, e cantava no coro do São Carlos, mas isso nunca significou que gostasse da ideia de as filhas se tornarem atrizes, já que, para ela, o teatro era uma coisa bem menor do que a ópera.".À distância de mais de meio século, a atriz consegue pôr-se no papel da mãe e compreender quanto amor havia nestas razões, até porque as mentalidades mudaram muito entretanto: "Havia muito preconceito. Repare que antes da reforma Veiga Simão, no princípio dos anos 1970, podia ir-se para o Conservatório estudar Teatro, com a 4.ª classe, o que fazia que o nível cultural dos atores fosse, de facto, muito baixo. Para a minha mãe, que viera muito cedo para um colégio interno, e trabalhara arduamente, essa via, pura e simplesmente, não era opção.". Dos 12 aos 19 anos, viveu, mais do que procurou um caminho: "Tinha um grupo de amigos muito divertido, saía bastante à noite, para grande aflição da minha mãe, que já me via perdida para a vida", brinca. Trabalhou como rececionista numa empresa de rent-a-car, fez estudos de mercado um pouco por todo o país, até que aos 20 anos a irmã a convidou para entrar na primeira encenação dela, uma vez mais o texto de Almada, Deseja-se Mulher. Sem saber muito bem o que esperar, foi e as boas críticas acabaram por a convencer a voltar à escola, no caso ao Conservatório. Formará depois um grupo de teatro de nome tão curioso como a escolha do repertório, Lídia, a Mulher Tatuada, e os Seus Atores Amestrados, com Carlos Manuel Rodrigues (que trouxe esse nome de Nova Iorque e do muito teatro of Broadway que viu nessa época), Clara Joana, Carlos Cabral, Vítor Valente e José Fanha. "Foi um tempo muito divertido", recorda a atriz. "Fizemos espetáculos como O Zé Pateta, o Bom Cidadão nos Entrefolhos do Treme-Treme ou 150 Anos de Amor e Aventuras do Zé do Telhado. Tínhamos lá a censura e apagávamos qualquer conteúdo político, para o recuperarmos no dia seguinte.".No meio de tudo isto, aconteceu o 25 de Abril. São José, a morar na mesma casa em que vive hoje, avisada do golpe de Estado por uma amiga que lhe batera à porta, corre à cabina telefónica mais próxima para contactar a família. Ainda ouve o pai recomendar-lhe que não saia de casa, mas ei-la já a caminho do Chiado e do Largo do Carmo, o epicentro dos acontecimentos, disposta a não perder pitada. "Acho que mal saímos dali durante três dias", lembra agora. Os anos seguintes seriam marcados pela urgência de mudar o país também através da cultura e das artes. Movido por esse propósito, nasceu o grupo de teatro A Centelha, contratado pelo Estado para desenvolver um projeto de animação, promoção e descentralização do teatro, no distrito de Viseu. Foi toda uma aventura. "A minha mãe tinha casa perto de Seia e, movida pelo apelo das raízes, lá fui eu, cheia de espírito messiânico, sem saber que a extrema-direita, descontente com o 25 de Abril, tinha ali um dos seus últimos redutos. Fizemos coisas muito boas, como levar o Zeca Afonso ao auditório da Feira de São Mateus, ou peças como As Guerras de Alecrim e Manjerona, com encenação do Norberto Barroca, mas posso dizer-lhe que arranjei um pastor-alemão e passei a andar com uma naifa no bolso.".Os tempos eram de confrontação política e São José, acompanhada pelo marido, o cenógrafo e autor Alberto Lopes, e pela filha bebé de ambos, Inês (hoje atriz, produtora e cenógrafa), não estava disposta a desistir: "Começámos a fazer vários trabalhos com perspetivas políticas. Foi muito forte. Levámos esse espetáculo ao Rossio de Viseu num dia 25 de abril e fomos insultados por um grupo de tipos vestidos de preto, que eram, afinal, daqueles grupos de extrema-direita que andavam por ali. Mais tarde, fui abordada na rua por um deles , dei-lhe um estaladão e ele respondeu-me com um murro. Ainda fui apresentar queixa mas não serviu de nada. Foi a partir daí que passei a andar com uma naifa.". Regressaria a Lisboa, persuadida por Filipe La Féria a integrar o elenco de um espetáculo que faria história no princípio dos anos 1980, A Paixão segundo Pier Paolo Pasolini, na Casa da Comédia. Seguir-se-ia o palco do Teatro Nacional Dona Maria II, de que chegou a fazer parte do elenco residente, e peças como Fernando, talvez Pessoa; Mãe Coragem e Seus Filhos; Passa por Mim no Rossio; O Leque de Lady Windermere; As Troianas ou As Fúrias. No meio de textos tão canónicos, Herman José desafia-a a trabalhar com ele no programa de televisão, Humor de Perdição. São José já participara em telenovelas, mas sente que o registo é diferente: "As câmaras atemorizavam-me muito. Fazer humor com o Herman assustava-me imenso e a popularidade que esses papéis traziam também era um bocado esquisita. Lembro-me de ser um bocado olhada de lado pelas mulheres aqui do bairro por causa da personagem da Berta Perdição, que era toda mandona e enganava o marido." Repetiria a experiência nos programas Crime na Pensão Estrelinha e Casino Royale. No final da década de 1990, a dissolução da companhia do Teatro Nacional Dona Maria II deixa-lhe um amargo de boca. Faz "um luto prolongado do teatro e dos pequenos ódios que caracterizam o meio. Durante uns três ou quatro anos não só não fiz teatro, como não fui a qualquer espetáculo, até que a minha filha me desafiou a animar a nossa Quinta das Aguncheiras, que fica na zona de Sesimbra". Aí, tem encenado (e interpretado) textos como Sonho de Uma Noite de Verão e Romeu e Julieta, de William Shakespeare; A Gaivota, Tio João (Vania) e As Três Irmãs, de Anton Tchekhov; Cinco Pequenas Peças, de Samuel Beckett; Ashes to Ashes e Landscape, de Harold Pinter; e ainda outros autores, como Jaime Salazar Sampaio, Hélia Correia, Fernando Pessoa e Abel Neves, autor da peça que está em cena no Teatro Taborda, em Lisboa, Da Compaixão - Chove e Sol em Paris, até 16 de maio. A encenação é de São José Lapa e a interpretação de Rita Ribeiro e Paula Guedes. Num futuro próximo, a atriz e encenadora espera dar forma de peça às cartas trocadas pelos pais na década de 1930. Volta sempre a eles ao longo da conversa (e à irmã, a atriz e encenadora Fernanda Lapa, falecida em agosto do ano passado):"Os meus pais eram muito diferentes um do outro, mas o seu casamento de mais de 60 anos foi um dos pilares da minha vida.". dnot@dn.pt