Se o título Canções do Pós-Guerra já de si soa a premonitório, que dizer da temática do novo disco de Samuel Úria? Apresentado como o seu trabalho mais "maduro e direto", o álbum já estava pronto desde o ano passado e era para ter saído em abril, mas quase se duvida disso, ao ouvir este punhado de canções, tão cruas e despojadas, no modo igualmente tão pessoal como o artista se revela ao ouvinte..Através das suas "insuficiências, inseguranças e defeitos", Samuel Úria e com ele toda uma sociedade, numa melancólica análise sobre a "pós-modernidade e o falhanço coletivo" em que o mundo se tornou. Mas lá pelo meio continua haver luz e esperança, tal como na vida, em que a catarse surge através dos finais felizes possíveis, mas também sob a forma de discos como este..Este disco poderia funcionar quase como uma banda sonora para estes estranhos tempos que vivemos, concorda? Concordo, não fosse o caso de ter sido todo feito em 2019, até os títulos das canções, quando ainda não havia qualquer caso de covid em Portugal. Mas não sei se as pessoas vão acreditar nisso..E como lhe soam agora estas canções e estas letras? Adquiriram um novo significado com tudo o que aconteceu depois? Não adquiriram propriamente um significado diferente, mas reconheço que esse mesmo significado poderá ter sido ampliado..Em que sentido? Porque muitos dos assuntos sobre os quais o disco reflete já eram indício de algumas insuficiências, neste caso minhas mas de forma mais genérica também sociais, que acabaram por ser postas à prova e vieram ao de cima numa situação totalmente adversa e global. E nesse sentido algumas características de que falo, critico, descrevo e de certa forma me penitencio neste disco acabaram por ser amplificadas devido a esta crise. Ou seja, não foi propriamente uma escrita profética, porque não antevia uma pandemia, mas já antevia estas nossas insuficiências, enquanto sociedade, face às adversidades..Como viveu o período de confinamento? Foi um período muito pobre em termos artísticos, porque havia todas estas canções novas, que era suposto terem saído em março e não as queria trair, começando a fazer coisas novas, quando estas ainda nem tinham tido a oportunidade de ter a sua vida própria. Foram dias muito repetitivos, que aproveitei para ler, curiosamente nem ouvi muita música, e especialmente para cozinhar e para comer, isso sim, foi a grande novidade. Acho que bati o meu recorde de permanência em casa, foram quase três semanas sem vir à rua..Deixando então de lado essa leitura mais imediata, qual era então o mote do álbum, revelar essas insuficiências e inseguranças do autor? Sim, porque para mim é mais fácil trabalhar criativamente a partir das minhas falhas do que das minhas qualidades enquanto pessoa. Posso escavá-las porque sei que nesse conflito comigo próprio vai surgir uma tensão que, para mim, é o melhor ingrediente para a criatividade. Se por caso fosse uma pessoa desprovida de problemas ou de inquietações acho que seria incapaz de escrever canções. Ainda penso em termos de álbuns, nesse aspeto sou bastante conservador e portanto quando consagro um período para escrever discos não vou propriamente atrás daquilo que me faz feliz, mas sim do que me corrói. Vou mesmo até à raiz dessa corrosão e esmiúço todas as minhas insuficiências e defeitos, analisando também os da sociedade à medida dos meus. Tento também perceber algumas ideias em que tive capacidade de me transformar e até acabo por ser mais pedagógico nessas canções. E também no que ainda não consegui, o que acaba sempre por me fazer escrever sobre temas como a redenção ou a culpa. De certa forma acredito que este método me preserva de ser corriqueiro e banal nas temáticas. Embora muitas vezes também procure essas temáticas mais corriqueiras e banais, porque estou tão desabituado de escrever sobre elas que tenho a certeza de que a minha perspetiva acaba por ser diferente. Isto é capaz de soar um bocado autista, mas acredito que quando queremos ter um cunho mais autoral temos de ser um pouco autistas e assumi-lo..Há algum lado terapêutico nesse método, que o ajuda a encontrar soluções para os tais defeitos e insuficiências? Não o é imediatamente, porque normalmente remexo em sítios onde a terra estava inerte, mas se me puser a pensar mais a fundo nisso, nestes 20 anos de escrita de canções esse método já me terá evitado algumas crises identitárias ou depressivas porque já aflorei coisas que a médio e longo prazo poderiam ter azedado. Portanto, acho que é algo que me faz bem..Entretanto, tornou-se também um autor muito requisitado por outros artistas. Como é esse lado do trabalho, tenta colocar-se na pele de quem vai cantar, por exemplo? Esse é um dos exercícios que me dão mais prazer, porque normalmente estou a escrever para pessoas que, enquanto intérpretes, são mais talentosas do que eu. E quando estou a escrever uma canção, muito raramente é a minha voz que oiço mentalmente. É muito bom esse exercício de poder escrever para vozes que vão amplificar as minhas ideias de forma muito mais perfeita. É um exercício muito divertido, esse equilíbrio entre não extinguir as minhas características de autor, porque quando me pedem uma canção também querem esse cunho, e pôr-me na pele de quem vai interpretar a canção. Ou seja, fazer uma canção da qual o intérprete se possa apoderar na totalidade, mas que ao mesmo tempo seja reconhecível, estrutural e estilisticamente como minha..E como é que o Samuel Úria é reconhecível na voz de outros? Há certos trejeitos. Não sendo um autor referencial, há coisas que eu leio e percebo imediatamente que soam a mim. Ainda recentemente escrevi duas letras para o novo disco dos Clã e a minha mulher, que só sabia de uma, estava a tentar adivinhar qual seria a outra. E ao ouvi-la disse que apesar de a temática não ser a mais habitual, a forma de escrever o era. Dá muito trabalho, mas também me dá um enorme prazer, quando consigo encontrar outra voz na minha voz e vice-versa..Costuma cantar as canções que escreveu para outros artistas nos seus espetáculos? Já houve foi canções minhas, dos meus discos, que dei posteriormente a outros artistas e essas sim, toquei-as ao vivo. Agora canções escritas de propósito para outras pessoas, isso não, porque lá está, não foram feitas para ser interpretadas por mim..E estes concertos de apresentação do disco, como vão ser? Não sei bem, porque há muitas canções que nunca foram tocadas antes ao vivo e eu próprio estou muito curioso para ver como ficam. Vou tentar ter todos os instrumentistas que participaram no disco e vou também tentar ter a Monday em palco, porque o tema em que ela participa foi mesmo pensado como um dueto com ela.