No princípio eram dois comprimidos, um azul e outro vermelho. Nessa muito conhecida cena de Matrix (1999), em que o Morpheus de Laurence Fishburne estende as palmas das mãos ao Neo de Keanu Reeves com as pílulas à escolha, marca-se o início de uma viagem sem retorno. A decisão de Neo pelo comprimido vermelho, que daria acesso à "profundidade da toca do coelho", isto é, ao conhecimento, em vez de permanecer na ignorância induzida pelo azul, levou-o por caminhos porventura demasiado agitados para um tímido programador de computadores. E que toca era essa? A consciência de que a realidade de todos os dias é uma grande ficção gerada por um computador que se alimenta da energia do ser humano, enquanto o mantém sob controlo. Encetava-se aqui, num filme dos irmãos Andy e Larry Wachowski, a representação máxima do poder da inteligência artificial. 22 anos depois, Matrix Resurrections recupera o conceito e as personagens que se inscreveram no imaginário do cinema de ação e de ficção científica como símbolos da cultura pós-moderna..Recapitulando, da alegoria da caverna de Platão ao Simulacros e Simulação, de Jean Baudrillard (livro que aparece no primeiro filme), o fundamento filosófico de Matrix foi para muitos o que elevou o estatuto desta produção da Warner Bros. Nos seus próprios termos, os Wachowski, hoje irmãs Lilly e Lana, quiseram quebrar o lugar comum segundo o qual os "filmes de ação" não se misturam com os "filmes de ideias", e vice-versa. Ora o resultado estonteante de bilheteira levou a mais dois filmes que se encostaram à sombra das ideias já experimentadas e garantiram novos arrojos à ação: Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, ambos lançados em 2003, deram continuidade à narrativa messiânica em torno de Neo. No segundo, ele já é claramente o "Escolhido", que enfrenta o maléfico agente Smith (Hugo Weaving) em cada vez mais elaboradas coreografias de artes marciais, e, no terceiro, dá a prova final do oráculo, sacrificando-se para salvar o mundo, quando a sua amada, Trinity (Carrie-Anne Moss) - o elemento feminino do trio de protagonistas da Resistência - já não pode ser ressuscitada uma segunda vez....Bem, de lá para cá, muita coisa mudou. Não só Lana Wachowski, a única das irmãs que assina Matrix Resurrections, fez a sua transição de género, como Neo e Trinity têm, afinal, outra oportunidade neste universo de recarregamentos e reiniciações. No novo filme ainda se veem os códigos verdes a escorrer pelos ecrãs como chuva, alguns números de artes marciais (não tão sofisticados como aqueles que ficaram para a história), o chamado bullet time e gatos pretos. Mas aquilo que tornava o conceito Matrix único, com todos estes detalhes a ele inerentes, está hoje tão normalizado nas grandes produções que, mais ressurreição, menos ressurreição, não adianta muito..Ainda assim, é bom ver Keanu Reeves regressar ao seu posto como Neo, sentir a gravidade que a personagem deu ao ator. Agora ele surge como designer de jogos - os jogos Matrix - e passa grande parte do tempo no psicanalista (Neil Patrick Harris), perturbado com visões que, obviamente, são memórias de um passado que os comprimidos azuis não eliminam por completo. Na mesma cidade vive Trinity, que casou e tem dois filhos, mas quando se cruza com Neo na cafetaria, tanto um como outro, não vão além da sensação de déjà vu. O momento deles chegará. Antes disso, porém, Neo deve voltar a experimentar o poder da pílula vermelha, pelas mãos de um Morpheus reconfigurado (Yahya Abdul-Mateen II), e dar ouvidos a uma jovenzinha de cabelos azuis (Jessica Henwick) que o quer levar de volta à toca do coelho..Repetir tudo de novo? É mais ou menos essa a lógica em que assenta Matrix Resurrections, desde logo, começando com uma cena a imitar a de abertura do primeiro Matrix, em que Trinitty limpava o sebo a uns quantos agentes, para depois ser perseguida. O déjà vu assume-se então desde o minuto inicial e uma série de imagens da trilogia vão pontuando o filme como bengalas para os espectadores que precisem de auxiliares de memória... Na verdade, toda a primeira parte - que é também a mais desembaraçada na autoironia, galhofando com o discurso filosófico que se colou ao imaginário Matrix - acaba por funcionar como revisão da matéria, para dar lugar a uma nova-velha dose de teorias de realidade virtual..O problema é que repetir não é um comprimido de nostalgia por si só. Para Lana Wachowski, regressar ao lugar onde foi feliz deveria significar emoções em vez de parlapiê nerd, confuso, enredo a rodar em seco e humor pouco afinado para disfarçar a falta de ideias. Digamos que há qualquer coisa de lei do menor esforço nisto tudo. Mastigam-se as recordações em quase duas horas e meia, com invólucro renovado, e o que fica? Umas "balas suspensas" de estima por duas das personagens e um lamento pela ineficácia. Quer dizer, agora que existem recursos tecnológicos para dar às sequências de ação uma linguagem inovadora, o filme que segue a trilogia que ficou conhecida por isso mesmo não é capaz de um movimento inspirado. Valham-nos os gatos pretos: não salvam o dia, mas quase..dnot@dn.pt