Recordações do jovem Eanes para goeses lerem em português no jornal 'O Heraldo'

O general, que era alferes quando esteve em Goa, elogia o espírito intelectual dos goeses, destaca a Índia como grande potência que tem interesse em ter em Portugal um parceiro estratégico, e desafia à redescoberta do português.
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Começa António Ramalho Eanes por relembrar: "Cheguei a Goa em 1958, num voo dos Transportes Aéreos da Índia Portuguesa (TAIP), depois de fazer escala em Beirute (então designada, e com razão, a Paris do Oriente) e em Carachi. Tinha 23 anos. Era alferes. A viagem para Goa era a minha primeira viagem fora do continente europeu." Foi esta ligação com mais de 60 anos do general Eanes a Goa que levou o Herald, jornal hoje em inglês, a convidar o antigo presidente a escrever um artigo para a página que todos os domingos é publicada em português no diário.

E quem alertou ontem o DN para o histórico artigo foi Homem Cristo Prazeres da Costa, que vive entre o Algarve e Goa, principal responsável pelo recente regresso da língua portuguesa ao Herald, que no cabeçalho, pintando de azul os dois ós (O Heraldo) mantém assim a homenagem ao português, a língua usada nas suas páginas desde a fundação em 1900 até 1983.

"Percorri, então, Goa inteira. Oportunidade tive de "visitar" São Francisco Xavier na Basílica da Velha Goa e constatar a veneração que merecia a goeses de todas as crenças e estatutos sociais", escreve mais adiante Eanes, que viveu dois anos no território que foi português desde a conquista por Afonso de Albuquerque em 1510 até à integração, por via militar, na Índia em 1961. Mais adiante, diz ainda ter ficado surpreendido "pela variedade de trajes das suas gentes e, sobretudo, a beleza dos saris das mulheres. Surpresa, para mim, fora também a cultura goesa, a sua dimensão, a sua distintividade, enfim, a sua personalidade. Em paz e dinâmica coexistência, viviam as diferentes religiões (hindu, muçulmana, cristã e outras). A vida intelectual era intensa e produtiva. Muitos eram os intelectuais, de alto nível, na literatura, nas ciências, no direito e na política, em especial".

Sublinha ainda Eanes, recordando esses anos de 1958-1960, que "muitos eram os jornais que, numa expressão de corajoso civismo, davam voz aos muitos goeses que contestavam a presença portuguesa em Goa e hostilizavam Salazar".

O antigo presidente (1976-1986) conta ter chegado a ser convidado para visitar o território por Indira Gandhi mas que a viagem foi frustrada pelo assassínio da primeira-ministra indiana em 1984. As relações entre Portugal e a Índia, cortadas depois da anexação, só foram restabelecidas depois de abril de 1974, e hoje atravessam um excelente momento, com o Porto, em maio, a receber a Cimeira UE-Índia no âmbito da presidência portuguesa da União Europeia.

Considerando a Índia uma grande potência, Eanes aponta Portugal como parceiro estratégico, por razões várias, como a pertença à UE, mas também pela influência global da língua portuguesa. E exorta os goeses a reatarem laços: "Natural e inteligente será, também, que ultrapassados os "ajustes históricos" e as suas 'contas', Goa e a sua juventude, em especial, entendam que a cultura do seu povo se enriquece, sempre, na relação histórica e civilizacional-cultural com outros povos, nomeadamente com o povo português, com o qual percorreu séculos de história."

A importância excecional do artigo levou a que fosse traduzido por Shanti Colaço para inglês e publicado em simultâneo, para a população que, a par do concani, cada vez mais usa a língua inglesa.

Homem Cristo, filho de um antigo redator principal do Herald e próximo dos atuais editor Alexandre Moniz Barbosa e dono e diretor Raul Fernandes (entusiastas desta página lançada a 6 de setembro), declarou considerar "este artigo como um importante documento para qualquer possível discussão entre Índia e Portugal para finalmente finalizar o prometido e muito desejado acordo cultural que salvaguardará a herança cultural de Goa". Autorizou também o DN a republicar o artigo de Eanes.

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