Racismo na PSP: o medo que Paulo sentia todos os dias levou-o a emigrar

O caso remonta a 2015 e ainda não há data para se conhecer o seu desfecho. Esta sexta-feira, decorreu mais uma sessão do julgamento dos 17 agentes da PSP da esquadra de Alfragide, acusados pelo Ministério Público de racismo, tortura e difamação.
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As memórias estão turvas e Paulo confessa estar nervoso. "Falar disto ainda me deixa com medo".

Tem agora 23 anos - 19 quando tudo aconteceu - e é servente da construção civil. Paulo Veiga é uma das alegadas vítimas do caso que levou à acusação de 17 agentes da PSP da Esquadra de Alfragide suspeitos de racismo, tortura e difamação contra um grupo de jovens da Cova da Moura. Um a um, todos foram contando em tribunal o que teria acontecido a fevereiro de 2015. Paulo é a última destas vítimas a ser ouvida e, para ele, entretanto, tudo mudou. Até o país de residência. Foi levado pelo medo que diz ter sentido diariamente depois deste episódio marcante da sua vida.

Foi a partir do momento em que saiu de sua casa, na Rua do Rosário, naquele dia, que Paulo passaria a fazer parte desta história. "Ouvi dois ou três disparos". Ao início da tarde, terá fechado a porta atrás de si e seguido em direção à Rua do Moinho, onde "estava muita confusão". "Uma senhora estava a queixar-se das feridas", começa por contar. Fala de Jailza, uma moradora do bairro, também já presente a tribunal, que alega ter sido atingida por um dos disparos dos agentes que visitaram o bairro naquela tarde e que depois detiveram Bruno Lopes, um dos ofendidos no processo.

Os amigos Flávio e Celso, representantes da Associação Moinho da Juventude, residentes na Cova da Moura e também duas das alegadas vítimas, já lá estariam. Tentavam saber o que estava na origem daquele aparato. Paulo Veiga questionou e, logo de seguida, terá acompanhado a decisão dos dois colegas de irem até à esquadra mais próxima saber como estava Bruno e por que tinha sido detido. "Fui eu, o Flávio, o Celso, o Angelino, o Fernando e o Miguel", conta.

À semelhança do que os restantes ofendidos no processo já disseram em tribunal, também Paulo descreve uma receção rápida e violenta por parte dos agentes, que assim que os terão visto aproximar da porta da esquadra, avançaram com armas para fora do recinto, insultando-os e agredindo-os. "Um disparou no Celso", confirma. Paulo tentou fugir, mas só Angelino e Fernando o conseguiriam fazer com sucesso. Ele e Miguel teriam sido intercetados por um outro polícia que os mandou parar e lhes apontou uma arma.

Este terá, com o auxílio de um outro agente que entretanto chegou, algemado e levado os jovens para a esquadra, onde já estaria também Flávio, Celso, sentados num banco, mais tarde também Rui Moniz, e até Bruno Lopes - pelo menos, de acordo com a versão de Paulo, contrária à dos outros ofendidos, que dizem não ter visto o "Timor", como lhe chamam. "Tem a certeza?", questiona, intrigada, a presidente do coletivo de juízes, Ester Pacheco. "Sim", frisa Paulo, embora alertando que a memória lhe falha ao final destes anos todos.

"Quando chegámos à esquadra, foi um terror". Paulo descreve um cenário de insultos e constantes agressões. "Mandaram-nos para o chão. Cada polícia que entrasse, insultava-nos e batia-nos", conta. Depois, terá visto Rui Moniz entrar na esquadra, também detido, algemado e deitado no chão pelos agentes. Paulo lembra-se de um momento específico: aquele em que pediram a documentação ao amigo e disseram "ainda por cima é pretoguês".

O "terror" que descreve terá sido transposto em memória para o resto dos dias, pelo menos até hoje. Esta sexta-feira, confessou em tribunal ter aguentado viver no bairro ate à última gota. "Parava no bairro até tarde, bebia um copo e dava uma volta. Deixei de conseguir fazer isso. Tenho medo que me apanhem e me batam", lamenta. "Então, fui para França procurar uma vida melhor". Oito meses como emigrante não foram, contudo, suficientes para apagar a dor de recordar aquele fevereiro de 2015. "Hoje estou com medo", repetiu em tribunal.

Ainda na sessão de julgamento desta sexta-feira estiveram presentes cinco testemunhas abonatórias dos arguidos. Um "exemplo", pessoas "humildes" e "afáveis", que "jamais fariam algo assim" - foi esta a forma como se foi descrevendo os agentes da PSP acusados. Duas das testemunhas tinham origem cabo-verdiana e uma delas afirmou nunca ter sentido qualquer tipo de racismo por parte de um destes agentes que foi hoje defender.

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