Um filme de ficção científica nas mãos de Claire Denis não é um filme de ficção científica. A realizadora francesa de obras como 35 Shots de Rum e O Meu Belo Sol Interior assina uma parábola sobre o desejo sexual em High Life, história de uma nave à deriva no espaço onde uma equipa internacional de astronautas pode estar a servir de experiência genética. Mas no cinema desta mulher não há explosões luminosas, efeitos visuais digitais nem criaturas viscosas. O inimigo parece vir de nós próprios e a camada de medo surgir do trauma humano mais existencialista..High Life, no último Festival de Toronto, teve honras de estreia de gala como se fosse um blockbuster de Hollywood. O cartaz evocava um thriller espacial e o ator principal, Robert Pattinson, é sempre um ai-jesus no red carpet. O resultado, tamanha a estranheza deste objeto, foi um certo silêncio no final da sessão, algumas caras embaraçadas e palmas tímidas. No dia seguinte, o DN tem direito a dez minutos com Robert Pattinson e com Claire Denis, apresentados a medo pela equipa dos publicistas desta produção francesa falada em inglês. High Life no papel devia ser uma coisa, mas na prática é outra. Uma obra com fragilidades evidentes mesmo quando a realizadora francesa faz trinta por uma linha para convocar os seus "temas": o isolamento e a condição humana nas suas extremidades..Claire está sorridente e muito curiosa para perceber se é normal a frieza com que High Life foi recebido. "Mas o que foi aquilo que se passou ontem!?", começa por perguntar. O seu ator, Robert Pattinson, entretanto anunciado como o novo Batman, que sucede a Ben Affleck, parece algo atrapalhado e diz sem relutâncias que o público dessas galas quer outro tipo de espetáculos. High Life pretende antes ser um exercício de meditação como Solaris, de Tarkovsky, do que um novo Gravidade, de Alfonso Cuáron, apesar de também ter astronautas à deriva no espaço. Mas aqui temos, por exemplo, longas cenas em que o astronauta de Pattinson está a pegar ao colo um bebé e comunica com ele numa linguagem inventada. "A cena do bebé e do Robert foi toda escrita, ele não está a inventar uma linguagem. Aqueles sons foram escritos, todos os da-da-da-da", diz muito apressadamente a realizadora num inglês perfeito. Não sabemos se está a gozar, mas Robert Pattinson pisca o olho e vai dizendo: "Foi uma das reações mais estranhas a um filme que vi na minha vida. Vi um tweet de uma pessoa que teve de sair da sala para vomitar. Calma lá! O que se passa com as pessoas!? Por um lado, é espantoso. Quem me dera ter vomitado a ver este filme! Ainda fico espantado como as pessoas se chocam com a arte em geral... Na verdade, o nosso filme é muito delicado. Deixou-me atónico como as pessoas ficaram chocadas visceralmente com High Life." Pois, se Robert Pattinson tivesse estado em Cannes quando Denis apresentou o filme-choque Les Salauds, talvez não estranhasse tanto...."Está a falar de Les Salauds, pois... Mas esse era um filme sobre homens filhos da mãe! High Life, de facto, não é tão violento", interrompe a realizadora, para logo a seguir ser interrompida por Robert: "Claire, o que se passa com os americanos e com os canadianos, é que ficam absolutamente aterrorizados com fluidos corporais! Passam-se quando veem esperma." "Claro, temos de perceber que aqui no Canadá há diferenças culturais, os puritanos... Curiosamente, fiz um filme com elementos muito puros", volta a ripostar Denis..Se muitos ficaram surpreendidos com a reunião entre um ator de renome em Hollywood e a cineasta Claire Denis, convém lembrar que Robert Pattinson, apesar de ter ficado famoso com a série de filmes Twilight, sempre lutou para ser respeitado na comunidade de cinema de autor, tendo inclusive afirmado há uns dias que o seu segredo é escolher realizadores e não projetos. Denis trabalhou com ele depois de o seu currículo ter nomes de cineastas como David Cronenberg, Josh e Bennie Safdie ou James Gray. "Para perceber um pouco o que a Claire queria de atmosfera dou sempre o exemplo dos testes de iluminação dos cenários. Foi logo aí que comecei a perceber muito do que iria ser o filme. Em High Life, as mudanças cromáticas são fulcrais para a criação das atmosferas. No argumento, estava lá essa referência. O plateau vivia da iluminação cromática, tal qual uma exposição de James Turrell. Devo dizer que é muito raro estar num plateau cuja iluminação seja definida apenas por esta ou aquela cor. Cada cor transmite uma sensação diferente", confessa o ator. "Senti que era importante esse lado da imposição das cores. Pedi ao diretor de fotografia para a iluminação não estabelecer o clima, antes o contrário. Não queria que esta nave parecesse um submarino, embora achasse bem que o público se sentisse preso nela. O meu espaço devia ser claustrofóbico mas de uma forma oposta à claustrofobia de um submarino. O espectador tem de acreditar que aquelas personagens possam viver na nave para sempre. Li que ninguém aguenta mais de sessenta dias num submarino ", completa a realizadora..Quem olhar para Robert Pattinson em High Life vê um ator livre e vulnerável. Há ali uma candura que é também dirigida e trabalhada por Claire Denis. Torna-se interessante a partir daqui tirar pistas para perceber como será o seu Batman, quase de certeza mais humano do que o de Ben Affleck ou o de Christian Bale. Ao DN confessa que todos estes papéis de "risco" lhe dão um terror maravilhoso: "Ontem antes da estreia de High Life adorei o facto de não ter a mínima ideia de como as pessoas iriam reagir ao filme. É muito bom não ter de estar à espera de agradar só por agradar, sobretudo nestes dias em que o espectador está demasiado condicionado para ser entretido. Falo do espectador que está a ter o controlo daquilo que vai consumir." A pergunta é se as pessoas que vão ao cinema ainda podem ser desafiadas. A resposta de Pattinson é simples: "Eu, pelo menos, sou um espectador que quer encontrar um filme que seja novo e diferente, não quero estar sempre a ver a mesma coisa. Estou numa fase muito excitante da minha carreira, é como se estivesse a jogar. Dá pica! Olhe, quero continuar a fazer filmes que causem vómitos às pessoas." Será que o novo Batman da Warner vai conter este elemento de risco? Será que Bruce Wayne vai mexer com o estômago dos fãs?.Já no fim, surge o elemento da banda sonora, composta, como sempre, por Stuart Staples, dos Tindersticks, e aí Claire Denis percebe que está com um jornalista português: "Refere a banda sonora porque é português e em Portugal os Tindersticks são grandes. Ao fim destes anos todos, sei que o Stuart tem uma espécie de telepatia comigo. É um músico que me compreende muito bem." Em High Life, a música e o próprio design do som do filme surgem como um elemento de perturbação psicológica. Trata-se de uma espécie de celebração de uma desestabilização cinematográfica.