Quando as publicações no Facebook dão despedimento
O jornalista Paulo Dentinho publicou nas redes sociais comentários sobre violação - no momento em que Cristiano Ronaldo é acusado de violação pela norte-americana Kathryn Mayorga - que geraram contestação e levaram-no a colocar o lugar de diretor de informação da RTP à disposição da administração da estação pública, que aceitou. Mas o que é que um funcionário de uma empresa pode ou não escrever nas redes sociais? Há legislação que coloque um limite às publicações no Facebook, Twitter ou Instagram? A resposta possível é "não, mas..."
"Não há qualquer legislação específica sobre o que um trabalhador deve ou pode publicar nas redes sociais", explica ao DN a advogada Maria da Glória Leitão, sócia da Cuatrecasas, coordenadora do departamento de Direito Laboral em Portugal, que não comenta o caso de Dentinho.
A lei diz que "o trabalhador tem direito à proteção da sua privacidade dentro e fora, quer do local, quer do tempo de trabalho. Além disso, o Código do Trabalho também reconhece de forma expressa [artigo 14º] a liberdade de expressão e de divulgação do pensamento e opinião, no âmbito da empresa, sempre no respeito dos direitos de personalidade quer do trabalhador quer do empregador". Uma máxima que, diz Maria da Glória Leitão, "funciona nos dois sentidos", resume a advogada.
Às redes sociais e publicações na Internet, "aplicam-se as regras relativas à proteção da privacidade do trabalhador", que resultam da lei geral e, em especial, dos artigos 16.º e 22.º do Código do Trabalho", precisa Maria da Glória Leitão.
Mas num mundo cada vez mais online, assuntos da esfera privada, em contexto de redes sociais, têm impacto na vida profissional, reconhece. "Há situações em que o que se passa no âmbito da vida privada do trabalhador pode ter repercussões na sua relação laboral, admitindo-se que o empregador possa não só regular aspetos dessa vida privada, como sancionar atos do trabalhador que, ocorrendo fora do ambiente de trabalho, tenham repercussões na empresa".
O caso da norte-americana Justine Sacco despedida por um comentário considerado racista no Twitter espelha essa realidade. Em dezembro de 2013 e antes de entrar no avião, a relações públicas escreveu na sua conta pessoal da rede social: "Estou de partida para África. Espero não apanhar sida. Estou a brincar, sou branca". Durante o voo para a África do Sul, o comentário que escreveu provocou uma onda de indignação nas redes sociais e a empresa onde trabalhava despediu-a. A companhia justificou a decisão ao considerar que os "comentários ofensivos não refletem os valores da IAC". "Levamos este assunto muito a sério e decidimos despedir o funcionário em questão". Justine Sacco lamentou o sucedido e mostrou-se arrependida. Mas para a IAC, "não há desculpa para as vergonhosas declarações que foram feitas".
De acordo com a advogada Maria da Glória Leitão, "a proteção concedida ao trabalhador encontra limites na proteção dos direitos fundamentais dos outros trabalhadores e do próprio empregador, ou no princípio da boa-fé no cumprimento do contrato de trabalho".
"Exemplo clássico será o do alto quadro de uma empresa, publicamente reconhecido como tal, que através de grupos abertos em redes sociais, faz revelações altamente denegridoras sobre aspetos da vida interna do seu empregador, ou aponta fortes defeitos aos produtos que este fabrica", explica.
Foi exatamente o que aconteceu em janeiro de 2013 quando o Tribunal do Trabalho de Matosinhos deu razão à entidade patronal e rejeitou a impugnação do despedimento por justa causa de um trabalhador, depois de ter publicado posts no Facebook contra a empresa. Referindo-se à Esegur - Empresa de Segurança, o tribunal considerou que os comentários que o funcionário fez na rede social "eram ofensivos da imagem, dignidade e bom nome da empresa de segurança, dos responsáveis e de alguns colaboradores". Este foi um caso pioneiro em Portugal, uma vez que foi a primeira vez que o processo judicial nestes moldes terminou com uma sentença. Até então, processos idênticos tinham sido resolvidos com um acordo entre as partes.
O trabalhador, delegado sindical e com funções de vigilante, foi despedido em janeiro desse ano, depois de publicar num grupo privado do Facebook, no qual era administrador, vários posts acusando a empresa de o humilhar e calar, de dizer mentiras, bem como de ordenar perseguições, descreveu o JN. Chamou analfabetos a alguns colegas e classificou os superiores como sendo palhaços. O trabalhador tentou impugnar o despedimento por se tratar de comentários feitos num grupo fechado e privado da rede social. Em tribunal, o empregado argumentou igualmente que tinha "direito à privacidade" e à "liberdade de expressão".
O juiz do Tribunal do Trabalho de Matosinhos entendeu, no entanto, ser "inaceitável que a liberdade de expressão e de comunicação não tenham qualquer tipo de limites externos".
A sentença foi depois confirmada num acórdão de 8 de setembro de 2014 pelo Tribunal da Relação do Porto. À Lusa, o advogado Tiago Piló, responsável pela coordenação da defesa da empresa Esegur ressalvou que a decisão da Relação do Porto "foi totalmente inovadora no panorama da jurisprudência" em Portugal, lembrando que também a sentença do Tribunal do Trabalho de Matosinhos "foi inédita".
No mesmo mês, um caso decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, "um trabalhador alegava ter sido ilicitamente despedido por tê-lo sido com base na publicação no mural da sua página pessoal do Facebook considerada ofensiva da honra do presidente do conselho de administração do empregador, rematado com a frase, escrita em maiúsculas: "partilhem amigos", conta a advogada Maria da Glória Leitão, citando o acórdão do tribunal. O juiz deu razão ao empregador, por "[ser] forçoso concluir que a divulgação do conteúdo em causa [...] deve ser considerada como pública", diz a causídica, citando o acórdão.
Embora não haja "qualquer legislação específica sobre o que um trabalhador deve ou pode publicar nas redes sociais", o seu uso massificado, sublinha Maria da Glória Leitão, "tem reflexo na vida das empresas e nas relações com os seus trabalhadores, suscitando diversas situações em que a empresa se vê confrontada com a necessidade de atuar disciplinarmente e, sobretudo, de impor regras de utilização destes meios".
Nesse sentido e na tentativa de evitar que opiniões expressas nas redes sociais pudessem comprometer os jornalistas da RTP, José Alberto Carvalho, diretor de informação da estação pública em 2009, alertou a redação para cuidados a ter com as opiniões na Internet. Num email enviado à redação fez nove alertas, o primeiro dos quais referia: "Nada do que fazemos no Twitter, Facebook ou Blogues (seja em posts originais ou em comentários a posts de outrem) deve colocar em causa a imparcialidade que nos é devida e reconhecida enquanto jornalista".
Para a advogada Maria da Glória Leitão a realidade é que "cada vez mais aquilo que dizemos ou mesmo fazemos [nas redes sociais] é ou pode ser divulgado e tornar-se acessível a um grupo cada vez maior de destinatários - àqueles a quem escolhemos divulgar e àqueles a quem os nossos destinatários decidem reencaminhar". Verifica-se, com frequência, defende a causídica "um imenso descuido ou falta de consciência do impacto que podem ter essas interações nas redes sociais".