Eis um segredo bem guardado: chama-se UnREAL, é uma magnífica série norte-americana sobre os bastidores de um programa de reality TV e está a passar nos canais TVCine (nesta semana começou a terceira de quatro temporadas). Reality TV? Há muito consagrada no nosso vocabulário mediático, a expressão reflete a mais primitiva utopia da televisão: funcionar como espelho automático e inquestionável da "vida real". A versão mais conhecida do género, Big Brother, foi lançada em Portugal corria o ano 2000, com uma sintomática frase promocional: "A novela da vida real"..O slogan envolvia uma perversa autocrítica: convoca-se o público para contemplar uma imaculada reprodução ("vida real"), mas o que se oferece não passa de um jogo de variações sobre o modelo mais codificado e repetitivo da própria televisão ("novela"). Daí o primeiro mérito de UnREAL, dando a ver o sistema de produção de um programa de reality TV - os seus conceitos, a sua execução, as pessoas atrás e à frente das câmaras e, por vezes, a cruel desumanização das respetivas relações. No seu calculado paradoxo, o título UnREAL (assim mesmo, com maiúsculas) é esclarecedor: irreal, surreal, "não real"..A contundência crítica de UnREAL está longe de ser uma novidade. De facto, aquilo a que damos o nome de "televisão" nunca foi um universo unívoco ou unificado: o seu gigantismo é feito de muitos contrastes, por vezes esquemáticos, outras vezes chocantes, ao longo das décadas pontuado por muitas ficções apostadas em discutir as regras de encenação e a moral (ou a falta dela) de diversos modelos de programação..Será preciso recordar que até mesmo uma série tão artificiosa e burlesca como Os Marretas (1976-1981) se distinguiu pela divertida desmontagem dos lugares-comuns das linguagens televisivas? Nem precisamos de recorrer a exemplos estrangeiros para o confirmar: aquilo que Herman José fez no histórico O Tal Canal (1983-1984), com uma verve ciclicamente retomada noutros programas de sua autoria, é também revelador dessa salutar capacidade de crítica e autocrítica..UnREAL pertence a uma árvore genealógica de ficções em que podemos encontrar exemplos igualmente brilhantes, desde logo no domínio da comédia: lembremos os casos modelares de On the Air (1992), a série que David Lynch e Mark Frost criaram logo após o sucesso de Twin Peaks, ou 30 Rock (2006-2013), entre nós intitulada Rockefeller 30, concebida e protagonizada por Tina Fey a partir da sua experiência como argumentista do programa Saturday Night Live. UnREAL inscreve-se num domínio dramático em que uma das marcas de excelência será The Newsroom (2012-2014), série que Aaron Sorkin escreveu logo após ter assinado o argumento de A Rede Social (2010), de David Fincher..O "noivo" e as "noivas".Criada por Marti Noxon e Sarah Gertrude Shapiro, duas veteranas da televisão americana, UnREAL baseia-se na curta-metragem Sequin Raze, realizada por Shapiro em 2013 (disponível no YouTube). Como pano de fundo, encontramos uma variação de The Bachelor, uma das mais antigas emissões de reality TV nos EUA (a 24.ª edição teve lugar no primeiro trimestre de 2020). Neste caso, o concurso tem a designação de Everlasting (à letra: "eterno", "para sempre") e também aqui há um pretendente, isto é, um "noivo" que deve escolher uma "noiva" de uma galeria de concorrentes - foi assim nas duas primeiras temporadas; na terceira, a personagem central passou a ser uma mulher..A complexa trama emocional que a série coloca em cena tem que ver, antes do mais, com as formas de manipulação dos concorrentes. Tal como em qualquer derivação do Big Brother, perpassa a noção segundo a qual cada um dos intervenientes caminha num sentido de purificação, porventura de redenção. Se a promessa de felicidade absoluta (everlasting) define a ideologia pueril do programa, rapidamente somos confrontados com o avesso das suas luzes intensas e cores gritantes, denunciando um universo de relações em que, em boa verdade, ninguém é inocente..Através dos seus "produtores", vigiando o comportamento do "noivo" e das "noivas", o programa vai criando sucessivas situações de conflito, quase sempre especulando de forma mais ou menos grosseira sobre a sexualidade dos concorrentes. Na primeira temporada, há mesmo um momento emblemático em que Quinn King, diretora e produtora executiva de Everlasting, chama a atenção de Rachel Goldberg, seu braço direito, para as regras do jogo, alertando-a para os perigos que decorrem do seu envolvimento afetivo com o pretendente: "Porque é que estás a deixar que o Adam chegue à tua vagina? Rachel, ele não passa de um adereço.".A avalancha de obscenidades (muito mais brutais do que a citação anterior) trocadas pelos que trabalham em Everlasting não significa que estejamos perante uma estratégia fácil, por vezes também muito televisiva, de banal caricatura de todo este universo. Bem pelo contrário. E não há dúvida de que essa é uma das maiores virtudes narrativas de UnREAL. Durante a segunda temporada, quando o "noivo" é um afro-americano, a série consegue mesmo a proeza de expor as nuances do racismo quotidiano sem nunca reduzir qualquer personagem (branca ou negra) a um banal estereótipo "ideológico"..Particularmente subtil é o tratamento da relação entre Quinn e Rachel. Para lá do autoritarismo cínico da primeira e da gélida metodologia com que a segunda sabe manipular os concorrentes (compelindo-os a comportamentos que, cinco minutos antes, consideravam impossíveis ou repelentes), para lá dessa aura de Dr. Frankenstein com que cada uma delas vai moldando as suas "criações", a série consegue mostrá-las como seres cuja agressividade e energia coexistem com inusitadas formas de vulnerabilidade e comoção. Mesmo com todas as suas manifestações de violência (a primeira e a segunda temporadas terminam com mortes, no mínimo, suspeitas), o mundo de Everlasting é habitado pela mais bizarra das castas. Entenda-se: seres humanos..Nada disto pode ser separado do consistente elenco de UnREAL e, muito em particular, das surpreendentes composições de Shiri Appleby e Constance Zimmer, respetivamente como Rachel e Quinn. São duas atrizes que têm cumprido uma carreira mais ou menos anónima em séries e telefilmes, por vezes com pequenos papéis em cinema, carecendo ainda de uma oportunidade que as projete para lá das rotinas de produção. Sem esquecer, ainda assim, que em 2016 ambas foram nomeadas para os prémios da associação americana de jornalistas de televisão (BTJA) nas categorias de representação dramática (apenas Zimmer ganhou, como atriz secundária), isto depois de a mesma entidade ter premiado UnREAL como a melhor série estreada em 2015..A herança de Hollywood.Nos tempos iniciais do Big Brother, assistimos a um curioso fenómeno de distração, promovido pelos responsáveis do respetivo conceito. Assim, seria tempo perdido, seria mesmo irrelevante, entregarmo-nos a reflexões "sociológicas" sobre a reality TV, uma vez que se tratava tão-só de um cândido "divertimento". A instrumentalização das relações humanas, a redução da sexualidade a uma performance genital ou o elogio do arrivismo, eis o que seria apenas "divertido" - e tanto mais quanto tudo o que acontece na televisão estaria abençoado por uma transparência inimputável..Duas décadas passadas, talvez seja oportuno repetir que não se trata de demonizar o que quer que seja: grande parte dos mais notáveis fenómenos audiovisuais dos nossos dias são gerados em televisão. De tal modo que o tecido televisivo - na sua imensa pluralidade de conceitos, valores e estratégias de produção - tem sido capaz de criar verdadeiros anticorpos ficcionais, como a série UnREAL, que não desistem de formular uma interrogação pedagógica: como, quando e porquê a televisão desrespeita a dignidade humana?.A mais rudimentar verdade histórica leva-nos a associar tal dimensão humanista a uma fundamental herança cinematográfica, nomeadamente no interior da produção dos EUA. Na verdade, ao longo de décadas, alguns filmes de Hollywood têm sabido escalpelizar os labirintos televisivos, por vezes com invulgar sentido premonitório. Não sendo cronologicamente o primeiro, o exemplo de Network/Escândalo na TV (1976), de Sidney Lumet, possui um fortíssimo valor simbólico: através das convulsões vividas no interior de um canal à procura de aumentar, por qualquer meio, as suas audiências, deparamos com um perturbante retrato das possíveis associações de televisão e populismo..Por vezes, o cinema dos EUA evocou mesmo acontecimentos verídicos da história da televisão: um exemplo modelar é Quiz Show (1994), de Robert Redford, sobre um concurso viciado, transmitido pela NBC na década de 1950. Noutros casos, como o subtil Broadcast News/Edição Especial (1987), de James L. Brooks, deu-nos a ver as atribulações de uma redação televisiva, num misto de desencanto e ternura em que, por uma vez, os jornalistas são gente concreta, não "heróis" das notícias. UnREAL é um descendente direto desses filmes, das suas histórias e personagens. E ajuda-nos a pensar o lugar central da televisão nas nossas vidas.