No inóspito lugar de Boi Morto (na freguesia de Pedrouços, concelho da Maia) um armazém abandonado - onde em tempos eram as instalações da empresa Tinturaria e Acabamentos de José Pinto - foi transformado numa gigantesca fábrica de haxixe, comandada por um casal de cidadãos chineses com propriedades registadas na Baixa de Lisboa, e que a PSP acredita terem ligações às tríades..O cabecilha e a mulher tinham autorização de residência legal em Portugal, no caso dele um visto gold..Uma operação realizada pela Divisão de Investigação Criminal (DIC) do Porto, no início deste mês, desmantelou esta fábrica de Boi Morto e abriu pistas para uma realidade criminosa mais complexa e transnacional. O casal, bem como outro chinês detido no armazém, estão em prisão preventiva..O Ministério Público (MP) delegou o inquérito à PSP e os seus investigadores já estão no terreno. Foi acionada a cooperação com as autoridades de Espanha, país onde quer a Polícia Nacional quer a Guardia Civil têm desativado locais muito parecidos com o que foi detetado no norte de Portugal a envolver também redes criminosas chinesas..De catanas em punho.As suspeitas sobre o que se passava dentro das quatro paredes do envelhecido armazém chegaram à PSP a meio do ano passado. Apesar de receber sempre a renda de três mil euros mensais a horas e em dinheiro vivo, o proprietário, que o tinha alugado no início de 2018, achou estranho não ser visível qualquer movimento..O sistema era tão sofisticado que incluía um potente equipamento de extração de gases para que quem morasse à volta do local não se apercebesse do cheiro..Mais, segundo revelou na altura a PSP, os suspeitos fizeram uma ligação direta e ilícita a um posto de transformação de eletricidade, tendo causado à operadora um prejuízo de mais de três milhões de euros durante um ano..As equipas da DIC começaram a apertar o cerco e montaram vigilâncias 24 horas por dia junto às instalações. A cautela era mais do que muita, pois cedo se aperceberam de que estavam a defrontar uma rede poderosa - tinham uma microcâmara de videovigilância para o exterior, com o intuito de vigiar o perímetro exterior, bem como um sistema de CCTV para controlar os acessos e o exterior do armazém, denotando organização e experiência na atividade criminal..O dia "D" chegou, quando numa noite as equipas de vigilância observaram o casal a sair do armazém com catanas na mão. Já coordenados com o MP, munidos de mandados, avançaram em direção a ele e deram ordem de detenção..Homem chinês nem sabia em que país estava.Quando entraram no armazém, com uma dimensão aproximada de um pavilhão gimnodesportivo, os agentes da PSP foram surpreendidos com a mais completa parafernália de equipamentos, instrumentos, material e muita, muita liamba (foi apreendida mais de uma tonelada).."Era como um laboratório gigante de haxixe, uma fábrica, com todas as fases de produção e transformação de liamba, com uma capacidade que nunca tínhamos visto", recorda uma fonte policial que está a acompanhar este caso..Lá dentro estava um homem também de origem chinesa, Chen C., com 48 anos, muito assustado, e que não falava uma palavra de português. Só quando chegou uma intérprete, cujos serviços a PSP tinha pedido antecipadamente, é que os agentes tiveram noção de que aquele homem poderia ser mais uma vítima da rede criminosa.."Nem sabia em que país estava. Contou que tinha sido para ali levado há muito tempo, do qual perdera a noção, e mandaram-no tomar conta das plantações. Ali dormia e comia sem nunca ver a luz do dia", lembra a mesma fonte..O real papel deste homem, que também acabou por ficar preso, ainda está a ser investigado, mas a PSP acredita que pode ter sido vítima de tráfico de seres humanos e alvo de extorsão por parte da rede chinesa..Um tipo de criminalidade, assinalado num relatório policial sobre o tema a que o DN teve acesso, que tal como o tráfico de droga e o jogo ilegal fazem parte do modo de financiamento das tríades..Morada da Rua Morais Soares.Lisboa surge como palco principal da atividade destas organizações e foi por isso que, quando constataram que o cabecilha Ye A., com 51 anos, tinha morada na Rua Morais Soares e teria outras propriedades na baixa lisboeta, que os investigadores viram uma evidente ligação à capital.."A Rua Morais Soares e outras adjacentes, na zona da Baixa lisboeta e na da Almirante Reis e Martim Moniz, estão perfeitamente identificadas, em diversos processos-crime, como associadas a indivíduos de nacionalidade chinesa que desenvolvem atividades criminosas, designadamente tráfico de pessoas, jogo ilegal, tráfico de droga, extorsão", é descrito..De acordo com o mesmo documento de análise, "a comunidade criminosa chinesa em Portugal tem ligações às tríades chinesas, que operam em toda a Europa, com particular incidência na Península Ibérica"..Para a equipa de investigação da PSP, que passou a envolver também o Departamento de Investigação Criminal, a nível da sede nacional, "tudo indica que a rede desmantelada na Maia tem ligações a outras redes que operam em Espanha, país onde recentemente a Policia Nacional e a Guardia Civil desmantelaram estufas muito parecidas com aquela encontrada no norte de Portugal e também controladas por chineses"..Dada a dimensão da fábrica, do material e do produto apreendidos, a PSP não duvida de que a droga era para abastecer o mercado europeu..Redes chinesas detetadas em Espanha.As autoridades espanholas também se têm confrontado com estas realidades, daí a PSP ter já agilizado um canal de cooperação direto para "para melhor coordenação do fenómeno e avaliação das ligações entre redes a operar na Península Ibérica"..Ainda neste mês, a Guardia Civil deteve sete cidadãos chineses numa zona industrial da Galiza, naquela que foi considerada a maior plantação de marijuana alguma vez detetada na região..Nenhum falava espanhol e nem mesmo com um intérprete quiseram prestar declarações. Estavam todos ilegais no país..Em abril passado, foi também esta força de segurança a libertar 21 pessoas - 12 de nacionalidade chinesa, nove vietnamitas - obrigadas a trabalho escravo em oito plantações de marijuana nas províncias de Ourense, Valência, Zamora, Jaén e Guadalajara..Foram detidos cinco cidadãos chineses suspeitos de pertencerem à organização criminosa. As vítimas, a quem tinha sido prometido o "sonho" europeu, tinham sido desapossadas dos documentos, estavam proibidas de sair da plantação e recebiam periodicamente comida e bens de higiene..Em maio do ano passado, as autoridades espanholas prenderam 50 pessoas, na sua maioria chinesas, em Madrid, Toledo e Ciudad Real, suspeitas de pertencerem a uma rede criminosa dedicada ao cultivo de marijuana em larga escala, com destino à Europa, sobretudo para o Reino Unido, bem como à produção de drogas sintéticas para exportar para a China..O que foi apreendido em Boi Morto.O armazém de Boi Morto encontrava-se preparado para efetuar todas as cinco fases de produção de liamba, desde a sua produção até à comercialização, estando o seu interior estava dividido em quatro áreas: dormitório, cozinha/armazém/arrumos, estufas, armazém..Material apreendido no armazém: • Mais de uma tonelada de liamba (1259 kg) • Diversos documentos, telemóveis e cartões SIM • Duas catanasMaterial para a produção da droga: • 3364 pés de planta de liamba • 462 balastros de 600 W • 450 lâmpadas de 600 W • 2 medidores de temperatura e humidade • 3 tabuleiros de germinação • 19 motores de extração de ar • 94 peneiras de secagem • 98 ventoinhas • 90 fertilizantes e adubos • 34 filtros de teto • 1 empilhadorNa habitação: • Diversos documentos de identificação, dois deles emitidos em Espanha • 2100 euros em notas do BCE • 13,5 kg de liamba • Balanças de precisão • Outro material usado na produção de produto estupefaciente