A Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, divulgou esta quinta-feira três documentos, intitulados Cadernos da Pandemia, um dos quais dedicado ao Estado de Direito e os problemas identificados no decurso da pandemia e da instauração do estado de emergência constitucional como instrumento jurídico para enquadrar as medidas de combate à crise sanitária provocada pela covid-19..A determinação constitucional de avaliação, e eventual renovação, a cada 15 dias do estado de emergência conferem um prazo de caducidade às decisões políticas que comprometem a adesão e a confiança dos cidadãos às medidas, defendeu a Provedora de Justiça.."É inevitável que tal aconteça, quanto mais não seja porque se torna assim dificílimo acompanhar a sucessão vertiginosa das decisões", afirmou Maria Lúcia Amaral..A Provedora defende que "tem feito falta, por isso, um instrumento jurídico que ordene para além dos quinze dias ou que dure para além deles", o qual, por essa razão, "não pode senão conter quadros gerais, definidos de forma suficientemente dúctil de modo a poder acomodar a regulação precisa das medidas que a variabilidade territorial e/ou temporal das circunstâncias venha a exigir".."Precisamos de uma Lei. De uma lei que indique, em contexto de grave crise sanitária como a que estamos a viver, quais os quadros gerais de atuação que podem vir a ser seguidos e de que modo é que eles podem vir a ser, depois, executados", afirmou..No entendimento de Maria Lúcia Amaral, o decretar do estado de emergência pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, nos primeiros momentos da pandemia e em novembro de 2020 revelam um "receio fundadíssimo" de que sem esse quadro legal em vigor não houvesse enquadramento para exigir o cumprimento de medidas de confinamento e outras restrições de direitos impostas.."Todavia, uma coisa é o aferir-se da necessidade de instauração do estado de exceção constitucional por as leis já existentes, e escritas muito antes da pandemia, serem insuficientes para sustentarem a adoção de medidas de 'confinamento'; e outra, completamente diferente, é o dizer-se que, em quaisquer circunstâncias, nunca nenhuma lei as poderá vir algum dia a autorizar ou habilitar, pelo que só mediante a declaração de estado de emergência poderão tais medidas legitimamente impor-se", defendeu a Provedora..Maria Lúcia Amaral lembra os enquadramentos jurídicos de França, Itália e Alemanha, onde a emergência constitucional se direciona a responder a ameaças políticas ao normal funcionamento das instituições e a atacar "a alma do Estado", tendo o combate à pandemia sido guiado por leis autónomas de saúde pública e proteção civil, que pela excecionalidade foram atualizadas para poderem continuar a enquadrar a resposta à crise sanitária.."Neste contexto, em que o condicionamento dos comportamentos sociais tem que durar o tempo que for sanitariamente exigido e não o tempo que for politicamente conveniente, a necessidade da tomada de decisões de curtíssima duração perde a lógica que o artigo 19.º, n.º 5, da Constituição inicialmente lhe tinha dado", defendeu a Provedora, referindo-se ao artigo constitucional que determina uma reavaliação quinzenal do estado de emergência..Maria Lúcia Amaral defende ainda uma reposição de equilíbrio com a devolução do papel legislativo à Assembleia da República neste quadro de emergência.."Ao longo de todo este ano fomos combatendo a pandemia através de decretos e de resoluções. Decretos do Presidente a declarar ou a renovar a declaração o estado de emergência; resoluções da Assembleia da República a autorizar, sem mais, as declarações presidenciais; decretos ou resoluções do Governo a regulamentá-las. Muitas vezes no espaço público foi apresentada a ideia segundo a qual haveria sempre um 'continuum' a equilibrar todos estes atos. Mas não há", lê-se no documento da Provedora.."Entre o momento da regulação administrativa emitida pelo Governo e o momento da decisão política da maior gravidade tomada pelos decretos presidenciais há um elo que falta: o do momento legislativo, que é o próprio do parlamento", acrescenta Maria Lúcia Amaral, que defende que "talvez o suprir desse elo que nos tem faltado contribuísse para repor o equilíbrio que o surgimento da pandemia tão abruptamente suspendeu".