Naquela sexta-feira 21 de agosto, a família Fonseca gozava o último dia de férias no Algarve. Segunda-feira regressariam ao trabalho, no Porto. Era quase meio-dia quando a sombra que escolheram para se abrigarem do sol a pique lhes levou a vida, sem aviso prévio. A arriba da praia Maria Luísa caiu e por causa disso morreram António José Fonseca e Anabela, marido e mulher, de 59 e 57 anos, e as filhas, Rita e Mariana, com 31 e 26 anos. Uma família inteira dizimada no dia em que se despediam das férias. Mãe e filhas morreram ali na praia, soterradas, o pai viria a falecer depois de ataque cardíaco..O julgamento da tragédia da praia Maria Luísa, ocorrida em 2009 e que fez cinco mortos, inicia-se nesta sexta-feira de manhã no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé. Passaram-se quase dez anos sobre os acontecimentos. Os tempos da justiça não se compadecem com os da vida humana e o único herdeiro da família Fonseca, o pai de Anabela, avô das jovens e sogro de António José, o senhor Manuel Marques Pereira, morreu à espera que se fizesse justiça pela morte, num único dia, de toda a sua família próxima. Era o único herdeiro direto, não havia mais ninguém, nem irmãos nem tios. Depois da sua morte, o tribunal habilitou como herdeiro um sobrinho, o mesmo que cuidou dele durante o tempo em que esteve doente..A indemnização pedida ao Estado é de 900 mil euros, um bolo a dividir por todas as vítimas, sendo que a este herdeiro irá caber a maior parte já que está em causa o desaparecimento de quatro pessoas de uma mesma família, que se extinguiu por completo. Na tragédia da praia Maria Luísa, em Albufeira, morreu igualmente Maria Emília de 37 anos, de Coimbra, que ainda foi retirada com vida debaixo das pedras mas que viria a falecer no Hospital de Faro. Houve três feridos, um deles em estado grave - era Vítor Sousa, namorado de Mariana, que entretanto refez a sua vida e vive no estrangeiro..Pedro Proença é o advogado que representa o herdeiro da família Fonseca na ação em que o Estado português se senta como único réu, reunindo todas as outras entidades que inicialmente também foram acusadas, como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e o Ministério da Defesa, que tutela a Autoridade Marítima. O advogado lamenta que Manuel Marques Pereira já não esteja vivo para ver o desfecho do processo que se arrastou todos estes anos até à primeira audiência. "Desenvolveu uma doença oncológica e imputava isso ao desgosto e à tristeza em que vivia, por não perspetivar justiça perante o caso que lhe levou toda a família.".Estado devia adiantar indemnização.A morte do autor inicial da ação contra o Estado, e até que fosse reconhecido outro herdeiro pelo tribunal, levou a que o processo estivesse algum tempo parado. Mas houve outros fatores, conforme faz questão de salientar o advogado. Pedro Proença diz que a APA "demorou imenso tempo a emitir o relatório de uma perícia pedida pelo tribunal, o que atrasou bastante o processo". "Mas este relatório não é mais nem menos do que a confirmação do primeiro. Em vez de prestar os esclarecimentos adicionais pedidos pelo tribunal em 2014, o Ministério Público entende que é normal e não há problema nenhum", acusa..Pedro Proença defende, por outro lado, que numa situação destas, em que o Estado é o réu, deveria já ter feito o que fez, por exemplo, nos fogos de Pedrógão em outubro de 2017 e na queda da estrada de Borba. Ou seja, chegar-se à frente com o pagamento das indemnizações, para evitar o desgaste das famílias e o arrastar do processo nos tribunais. Até porque, diz, está preparado para que o processo se prolongue por mais uns bons anos, uma vez que com os valores em causa as perspetivas de recurso para tribunais superiores são elevadas..Além do argumento baseado em testemunhos de que a praia não tinha sinalização visível, o advogado Pedro Proença tem outro, que vem aliás vertido no relatório da APA - o facto de dias antes se ter registado um sismo de 4,2 na região. "O Estado está a utilizar o sismo em sua defesa, no sentido de fragilizar as condições da arriba. Mas se havia a constatação de um sismo e havia noção da fragilidade da estrutura, o cuidado devia ter sido redobrado e acrescido. Não me parece que isso seja abonatório para o Estado.".O que mudou desde a tragédia?.Passaram dez anos sobre a derrocada da falésia que causou a morte de cinco pessoas na praia Maria Luísa, que lições foram retiradas? A Agência Portuguesa do Ambiente - que tutela os Planos de Ordenamento da Orla Costeira, com a colaboração da Autoridade Marítima e dos municípios - diz que os ensinamentos resultaram sobretudo no aumento da frequência das ações preventivas. E nomeia: reforço da sinalização, através do incremento do número de placas informativas, "sendo que atualmente existem placas informativas sobre as zonas de risco em todos os acessos às praias do Algarve suportadas por arribas"; a uniformização da tipologia de placas em todo o território nacional; incremento das intervenções de saneamento das arribas (derrocadas controladas)..A APA refere ainda que no Algarve "existe uma rotina consolidada de monitorização das arribas", que passa por inventariar e registar as ocorrências - por exemplo, no período 2018-2019 foram já registados 14 desmoronamentos, sendo a média anual de 17. A praia Maria Luísa foi aliás palco de mais derrocadas, nomeadamente, em 2016, embora se tivesse temido o pior, não houve vítimas..No site da Agência Portuguesa do Ambiente, na zona do Algarve estão assinaladas 75 praias, com faixa de risco das arribas. O concelho de Albufeira é o que apresenta maior número - 24. Segue-se Lagoa (17), Vila do Bispo (11), Portimão (9), Aljezur (7), Lagos (5) e Silves (2) (faça scroll down na infografia)..tabela Infogram.Por outro lado, a APA diz que realiza vistorias periódicas ao estado das arribas, no sentido de detetar sinais de rutura iminente. E faz ainda propostas de intervenção tendente a minorar o risco, seja por reforço da sinalização ou saneamento da zona instável (derrocada controlada). Por exemplo, este ano, na sequência da derrocada verificada em 28 de outubro de 2018, na Ponta de João de Arens (Portimão), houve necessidade de colocar vedação no topo da arriba onde se verificou o desmoronamento, refere a agência..A responsabilidade do cidadão.O comportamento de quem utiliza as praias é, contudo, um fator muito importante. Sendo certo que nem todos cumprem as sinalizações que alertam para o risco de derrocada, ainda há muita gente que continua a procurar a sombra das arribas. Alveirinho Dias, professor reformado da Universidade do Algarve especialista em erosão costeira, tem um discurso crítico sobre esta questão: "Compete às estruturas governamentais esclarecer as pessoas dos riscos de estarem junto das arribas, porque a qualquer momento podem cair pedras, blocos ou mesmo toda a arriba. Mas também devia haver uma responsabilização, em vez de ser o Estado a assumir o compromisso de proteger o cidadão, que é um pobre coitado e não sabe tomar conta de si.".E dá o exemplo anglo-saxónico, lembrando que em Inglaterra as placas avisam do perigo mas informam que a partir daí o cidadão está por sua conta e risco. "Isto devia ser aprendido nas escolas.".Há, de facto, ações desenvolvidas junto dos estudantes pela Autoridade Marítima, o denominado programa Cidadania Marítima, que consiste em palestras de agentes da Polícia Marítima sobre as regras de segurança e cuidados a ter nestas zonas..Próximo do início da época balnear, e também durante esse período, a Polícia Marítima incide as suas ações de vigilância nas zonas identificadas de maior risco, com o objetivo de sensibilizar os utentes a adotarem um comportamento defensivo e a prevenirem situações de perigo..O papel da Autoridade Marítima estende-se à aplicação de multas aos infratores: a lei prevê coimas no caso de permanência em zonas interditas, transposição de barreiras, destruição de sinais ou barreiras - o valor é de 30 a 100 euros para as duas primeiras e de 250 a 1000 euros na terceira..Praia de "uso suspenso" e "uso limitado".Três anos depois da tragédia na praia Maria Luísa, o governo de Passos Coelho aprovou legislação (Decreto-Lei n.º 159/2012, de 24 julho) que estabelece medidas de prevenção do risco e da segurança dos utentes, onde está contemplada a possibilidade de uma praia ser declarada "praia de uso limitado", "sendo recomendada uma utilização restrita especialmente quando utilizada por adultos acompanhados por menores de 13 anos". Em "casos de força maior ou emergência grave", a APA pode emitir uma declaração de "praia de uso suspenso". Medidas, aliás, já admitidas pela legislação de 2009 mas aqui reforçadas..O diploma prevê a utilização de um modelo de sinalética uniforme para alertar os utentes para os riscos, mas também faz referência à necessidade de os utentes terem uma conduta consciente..A verdade é que depois de cinco mortos na praia Maria Luísa, de mais legislação, as arribas continuam a cair sem aviso prévio. Em agosto de 2016, o pânico voltou àquele areal com a derrocada de mais uma falésia. Nessa altura, o diretor regional da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), Sebastião Teixeira, que esteve no local, disse que a arriba "não estava identificada como sendo de risco iminente". Mais: "Pode acontecer a qualquer momento uma arriba desmoronar sem aviso prévio, como aconteceu.".Aconteceu a 21 de agosto de 2009. A falésia cedeu e levou cinco vidas, provocando uma comoção nacional quando grande parte do país estava a banhos no sul. Manuel Maio ainda se lembra desse dia como se fosse hoje. Era então presidente da Junta de Freguesia de Ramalde, onde vivia a família Ferreira. "Vi nascer as meninas, o pai era meu sócio, a mãe era educadora numa IPSS e a Rita psicóloga da junta.".Foi ele quem rumou a sul para fazer o reconhecimento dos corpos - acabaria por só reconhecer presencialmente o do amigo, porque o da mãe e os das duas filhas estavam em muito mau estado e teve de o fazer através do reconhecimento de bens pessoais e imagens recolhidas..Quando as televisões começaram a dar a notícia, uma das funcionárias de uma IPSS ligou-lhe para o gabinete a perguntar se sabia alguma coisa da família, já a adivinhar o pior. "Por acaso, tentei falar com a Rita, mas o telefone tocou e ela não me atendeu, respondi-lhe.".Mais uma informação, a sustentar o que antes eram só maus pressentimentos. "Olha que houve um acidente grave na praia e acho que o Vítor está hospitalizado." Aí deu-se o clique. Manuel Maio começa a fazer diligências para os hospitais, liga para o telemóvel do amigo Mota da Fonseca. "Toca, toca, e atende-me um agente da polícia marítima a confirmar que morreu, mas não diretamente na queda da arriba. A partir daí identifiquei logo que era a família." Era sexta-feira. Às seis da manhã de sábado estava à porta da Polícia Marítima, conseguiu acelerar todos os procedimentos legais e as autópsias. Domingo, Ramalde despedia-se da família.