José Guirao Cabrera (Murcia, 1959) chegou ao ministério da Cultura e Desporto de Espanha há um ano, após a polémica saida do escritor Máxim Huerta, acusado de fraude fiscal. Licenciado em Filologia Hispânica, trabalhou no Centro Andaluz de Arte Contemporanea, em Sevilha, e foi diretor do Museo Reina Sofia, em Madrid, entre 1994 e 2001. Durante o seu mandato, o museu foi ampliado (a partir de um projeto do arquiteto Jean Nouvel). Esteve depois á frente da Casa Encendida, espaço dedicado a arte e cultura, antes ligado à Caja Madrid. Em Portugal, abriu a Mostra Espanha, uma montra para o que estão a fazer os artistas espanhois e encontrou-se com a homóloga Graça Fonseca..Comecemos pelo desporto. Levaram-nos o João Félix para o Atlético de Madrid. Que têm para a troca? (risos) Nada. Não sei..Que se pode aprender do Desporto para que a Cultura seja mais popular, o que é sempre um assunto, e uma área, a da ampliação de públicos, em que tem trabalhado. O desporto é fantástico, em geral. Mesmo nos desportos individuais é preciso trabalhar em equipa e isso é um ensinamento maravilhoso para a vida. Outro é o espírito de superação e esforço. Os desportistas estão sempre a desafiar-se e a ganhar e avançar. Esse espírito de competitividade, em geral muito saudável, está muito bem. A outra coisa boa do desporto é que não distingue classes sociais, se jogas numa equipa porque és bom guarda-redes, é indiferente que o teu pai seja engenheiro ou que seja trabalhador da construção, o que também faz com que nos ambientes desportivos se gere uma coisa muito saudável de rutura das regras sociais, culturais e económicas. Esses valores do desporto podem ser exportados a tudo, e à cultura, evidentemente..Em Espanha, como em Portugal, procuram sempre atrair mais pessoas à cultura. É um desafio? Esse é "o" desafio, porque o património e a cultura conservam-se para os cidadãos. Herdamos o património para deixar melhor para as gerações que vêm. E importante a comunidade entender-se à luz da sua história e isso só se consegue com o património. Do lado da cultura contemporânea, trata-se de fazer parte dessa sociedade. O trabalho mais difícil é a pessoa ser contemporânea do seu próprio tempo. Ser consciente. Sobre o passado todos temos opinião, porque já fizemos a digestão. Há uma bagagem a que nos agarrarmos, mas viver o presente é complicado porque é preciso digerir a mensagem e ir reagindo. Creio, como dizia Eugenio Montale, prémio Nobel da Literatura italiano, que para o homem moderno era tal a pressão que tinha imposta pela sociedade que não estava capacitado para uma vida tão acelerada e que se refugiava em massa para se proteger. O problema da cultura é que todo o mundo possa entender o mundo em que vive. Por isso é importante tirar à cultura o halo de elitismo que normalmente não é atribuído pelas pessoas, mas por nós os gestores culturais. Muitas vezes a culpa é dos gestores culturais, porque dizemos "isto não o vai entender não sei quem", "o outro é não sei como". Vamos pondo etiquetas. Se tirássemos a etiqueta e abríssemos a porta para a gente entrar, cada qual entenderia à sua maneira. O problemas são os preconceitos. Pré-informação. Pré-classificação das coisas. Pela minha experiência, as pessoas têm um espírito muito mais aberto, em todos os sentidos. Surpreendem..Di-lo com base na sua experiência. O público é sempre mais inteligente do que os gestores culturais. Depois há pessoas que vêm com preconceitos, também não vamos ser rousseaunianos. Mas a minha experiência no Museo Reina Sofía diz-me isso. Ao Museo Reina Sofía vai muita gente que entra pela primeira vez num museu de arte contemporânea para ver Guernica. Para vê-lo é preciso atravessar meio museu e para sair é preciso atravessar o outro meio. E se nos fixarmos naquilo em que as pessoas sem a experiência da arte contemporânea param, em 95% dos casos é sempre nas melhores obras, que não têm por que ser as mais conhecidas. Aconteceu-me muito. O Reina Sofía era um museu muito grande, um esforço enorme. Perguntava-me "que faço aqui?" e descia às salas. Observava o que viam. Esse é o poder da arte. Que um quadro - todos são telas pintadas - capte a atenção. Por que razão um atrai e outro não. Por exemplo, na sala de Miró, cheia de quadros grandes, de cores, dos anos 60, há uma peça [mostra com os dedos que é pequena] da época surrealista - um pedaço de papel de lixa, uma linha, um ponto e um sapato - e aí parava a maioria das pessoas ao lado de um quadro cheio de cores. O público pode ensinar-nos muito. Nós pensamos em como educar o público, mas os gestores têm de deixar educar-se pelo público. Não podemos dizer: quero este público. Temos de ver que público temos..O Ministério da Cultura em Portugal acaba de anunciar que haverá um trabalho com as escolas, com um coordenador cultural. Como vê esta medida? Como é, em Espanha, a vossa experiência de articulação entre Educação e Cultura? Cada museu tem o plano pedagógico, há uma linha geral de trabalho, mas não há um plano nacional. De todas as formas, às crianças, mais que falar-lhes, há que ouvi-las, porque não têm preconceitos. Há que criar um contexto no qual, criança e adulto, se sinta confortável e não dirigido. Que sinta que pode opinar, que não sinta receio de dizer que não gosta. Há que criar um contexto em que o público se sinta livre. O público sempre me ensinou coisas, mais do que eu ensinei. No fim de contas, o público deteta a qualidade. Por que razão uma exposição é êxito tremendo e outra não? Às vezes é pelo nome, mas no fim de contas é porque uma é uma boa exposição e a outra não. É um problema de comunicação, de criar uma situação favorável à comunicação..Uma experiência? Muitas vezes quando se fala de criar uma experiência, é algo que tu queres que a pessoa tenha, e estou contra isso. Tens de gerar condições para que cada indivíduo pessoalmente tenha a experiência que considere ter ou que surja. Não gosto de dirigir as pessoas como se fossem ovelhas num redil. Parece-me demagógico. Acredito na liberdade para escolher, para sentir, para pensar. O que há é que gerar situações, contextos, em que a pessoa se sinta bem, para ter a sua experiência. E tu, o que podes dar, são dados, alguma informação, que dê esse contexto. Não impor um critério. Há informação sobre as obras de arte que está para lá para as próprias obras de arte. Vemos isso nos museus: o guia explica que a obra foi pintada por fulano, por encomenda do rei, porque era um presente, que pagou não sei quanto -a história do quadro. Mas o quadro tem mais coisas. Há muita coisa que tem muita história e nenhum interesse plástico, como os arquivos. Têm mais informação histórica do que um quadro e não lhes pomos uma moldura e não vemos interesse plástico. Por vezes, a informação oculta o interesse plástico. Há que dar informação suficiente, mas também há que esperar as perguntas. Haverá quem pergunte pela história, outros por outras coisas. A arte e a cultura há que as ir desvelando, não deve ser de uma vez só. Há que criar as condições para que aconteça, que uma pessoa vá a uma exposição e queira voltar. Há que ser subtil, pouco demagógico e pouco dirigista. Não é fácil a minha proposta..Esteve em Lisboa para a abertura da Mostra Espanha. Na terça-feira esteve no Museu de Arqueologia onde está a Pátera de Titulcia, uma peça com 2500 anos de vida. Que nos pode contar uma peça como esta sobre as relações entre Portugal e Espanha? Espanha e Portugal são duas construções modernas. Na Antiguidade era um território que estava próximo. Estivemos a ver peças do sul, do Alentejo, de ouro, que têm relação com o que apareceu em Sevilha. A construção dos países é uma coisa da Idade Média, da queda do império romano para cá, menos de mil anos. Desde o ponto de vista da arqueologia, da pré-história, Portugal e Espanha, temos quase tudo em comum, não há diferença, antes da romanização. Somos os mesmos. Isso viu-se na exposição Lusitânia, há dois anos. Creio, pois, que nos temas de arqueologia, tendo tão bons arqueólogos em Portugal e Espanha, devíamos fomentar os projetos comuns de investigação. A cooperação, na arqueologia, devia fazer sentir os espanhóis portugueses e os portugueses espanhóis..Que pode fazer o ministério para que isto possa acontecer? Estivemos a falar ontem à noite com a ministra portuguesa Graça Fonseca depois da visita ao Museu de Arqueologia, como é que podemos intensificar a colaboração e fazer projetos expositivos comuns. Há boas relações entre os dois países. É fazer. Não há muito mais a dizer. A história é comum. Às vezes tenho a sensação de que, em Espanha, Portugal é um grande desconhecido. Não sei se para os portugueses, os espanhóis são assim tão desconhecidos. Há muito por fazer..Aproxima-se uma comemoração importante. O V Centenário da Viagem de Circum-Navegação..Estamos em paz? Estamos em paz. Absolutamente. Tudo está resolvido. Vamos trabalhar em duas coisas: a candidatura a património mundial, que será conjunta, e no programa de atividades. Os comissários das duas comemorações, a de Portugal e a de Espanha, já estão a falar, para que quando termine uma exposição aqui e a outra lá se unam as coisas e se possa mover pela rota dos países da viagem. A graça da rota é que é a primeira viagem planetária que alguém dá a volta ao planeta. É a primeira viagem da globalização, como alguém já disse..Esteve no início do mês de junho em Tordesilhas, onde se mostrou o Tratado que ali foi assinado entre Portugal e Espanha em 1494. Foi possível dividir o mundo em dois. E são assinaturas cujas consequências chegam até hoje. Criam-se dois impérios marítimos. Depois vêm os outros tirar-nos, mas o Tratado de Tordesilhas não tinha voltado a Tordesilhas desde que foi assinado, há 525 anos. Quase 7 mil pessoas foram vê-lo em quatro dias. Estava na Casa do Tratado, que se supõe que é o espaço onde foi assinado - um espaço musealizado, pequeno, que conta a história da divisão do mundo. Foi um êxito! Temos o português e vocês o espanhol. Está muito bem conservado, mas não pode sair muito, por questões de conservação. Também se mostrou uma carta de Cristóvão Colombo, uma das primeiras depois de descobrir a América. Temos muito que mostrar!.Que dimensão terá esta comemoração da viagem de circum-navegação? Em Espanha, deu-se toda a importância. Há uma comissão nacional, presidida pela vice-presidente do governo, ao mais alto nível. Temos todo o ministério implicado e há um programa de atividades enorme. Há muitas instituições envolvidas, também o País Basco, de onde era Juan Sebastián Elcano. E também há projetos de séries de televisão, de filmes... Há a exposição, que é a maior sobre o tema. Inauguramos a 12 de setembro, em Sevilha. Estou contente com o nível de acordo e colaboração com o Ministério da Cultura, com o anterior ministro e com Graça Fonseca..Falemos do independentismo: que efeitos podem produzir na cultura? Não produz nada bom, produz distanciamento. E na Catalunha, ensimesmamento. Fechar-se ao resto das coisas que passam. É verdade que existem duas questões: a política das instituições catalãs, mais fechada; e a gente da cultura da Catalunha, que é muito mais aberta. É preciso separar. Os setores culturais são muito abertos e gostam do intercâmbio com França, Portugal, o resto de Espanha, o resto do mundo... Na cultura não vejo esse problema. Do ponto de vista institucional, do governo catalão, vejo essa tentação de gerar separação..Na música pop não acontece isso. Rosalía é de Barcelona, usa o flamenco e, pelo contrário, é criticada por apropriação cultural. Contrariamente ao que se diz, há uma tradição de flamenco na Catalunha. Até se inventou a rumba catalã. Barcelona é uma cidade riquíssima. É um caldo de culturas que está vivo..Mas a questão independentista é muito forte. Hoje em dia é mais forte o aparato da propaganda do que o movimento independentista. O núcleo duro está mais empenhado na propaganda do que na realidade. Não estou a dizer que não seja um problema, impregnou a convivência, mas diminuiu muito..Falemos do papel do resto de Espanha para com a Catalunha, e, com isto, do partido Vox. Viu-se, claramente, com o resultado do Vox que a maioria de Espanha não pensa dessa maneira. Penso que minguará. Não é um partido que vá crescer mais, creio que atingiu o seu teto. Em Espanha, a imensa maioria é muito pacífica e não quer conflitos ou um partido que se centra no conflito. Aconteceu ao Partido Popular. O mau resultado é porque foi para a extrema-direita. O PP ganhou as eleições quando estava no centro e quando o Partido Socialista estava mal. O contrário aconteceu agora. Os resultados dizem-nos que a maioria da Espanha quer gente de diálogo, construtiva, de convivência construtiva, não de confrontação. O PP continuará à direita, mas mais ao centro e a extrema-direita vai baixando..E o próximo governo, estamos justamente numa época de diálogo. Enquanto não aconteça a investidura, em julho, não se vê nada..Quais são as duas prioridades do ministro da Cultura e do Desporto? São infinitas, mas trabalhar bastante as leis. Temos uma nova lei do desporto, que inclui o desporto inclusivo e feminino, que é algo que não existe na lei de 90. Por outro lado, na cultura, há uma prioridade que é fazer uma nova lei de mecenato para aumentar a participação privada no financiamento da cultura, terá muito micro-mecenato. E o desenvolvimento das indústrias culturais. Em Espanha temos condições ótimas para esse grande desenvolvimento, ligado sobretudo à imagem - videojogo e cinema de animação, setores que estão a crescer muito, e audiovisual. E manter o nosso património em perfeito estado.